Os Trapalhões faziam um humor considerado infantil, que no entanto seria um caso de polícia nos dias de hoje. Didi Mocó e sua trupe troçavam de nordestinos, negros e gays –e no entanto eram perdoados, talvez por contarem entre si com membros de cada uma destas minorias.
Um assunto, no entanto, era tabu absoluto: a religião. Passados tantos anos, Renato Aragão não mudou de ideia. Ele ainda acha pecado rir da fé, como defendeu no programa "Na Moral" em meados de 2013.
O mesmo programa teve a participação de Gregório Duvivier, que discordou do venerando trapalhão. E, por causa desta discórdia, ele agora se vê no centro de um turbilhão que opõe católicos e outros cristãos a seu grupo de humor, o notório Porta dos Fundos.
O estopim foi o "Especial de Natal", uma compilação de cinco vídeos satíricos que o Porta lançou no YouTube no dia 23 de dezembro passado. O objetivo declarado era repetir o recorde de audiência que o canal do grupo registrou no final do ano passado.
Em números absolutos, foi um sucesso: as visualizações já ultrapassaram a casa dos quatro milhões. Mas, dessa vez, a grita dos descontentes foi maior do que de costume.
Há petições online pedindo que o vídeo seja retirado do ar e os humoristas enquadrados no Código Civil, que proíbe a vilipendiação de objeto ou culto religioso. Até dom Odilo Scherer se manifestou: o cardeal-arcebispo de São Paulo classificou os vídeos de "péssimo mau gosto" (sic).
Foi em resposta a ele que Gregório assinou na segunda-feira, dia 13, mais uma de suas colunas memoráveis na "Folha de São Paulo". Diz que sente orgulho de ser perseguido como o foi Galileu Galilei, e também não se furta a esmiuçar suas muitas desavenças com a Igreja Católica.
Tudo isto é meio novo na cultura de massas brasileira. Não estamos acostumados a fazer piadas com religião - pelo menos, não em público.
Os americanos estão. Já citei neste espaço o musical da Broadway "The Book of Mormon", uma enorme tiração de sarro da Igreja dos Santos dos Últimos Dias. É difícil imaginar tal espetáculo sendo montado no Brasil.
A liberdade de expressão quase ilimitada que vigora nos Estados Unidos não implica numa paz absoluta. Os processos são frequentes por lá, assim como as trocas de farpas e insultos. Democracia para valer é assim mesmo.
Aqui no Brasil já há uma parcela significativa da população que pensa dessa maneira. Literalmente nada é sagrado: tudo pode ser criticado às claras, tudo pode ser objeto de gozação (daí a ter graça ou não são outros quinhentos).
Mas uma outra fatia, provavelmente ainda majoritária, acha que não. Prefere cercear a opinião dos outros, ao mesmo em que tempo em que se diz vítima da intolerância quando topa com alguém que não reza pela mesma cartilha.
É o tipo de gente que "desafia" o Porta dos Fundos a fazer piada com os muçulmanos. O argumento é frágil, a começar pelo fato de que só uma parcela ínfima dos seguidores de Maomé é formada por terroristas.
Também trai o desejo secreto de reagir à bomba contra qualquer dissidência. Essa gente, simplesmente, não sabe o que é democracia.
O debate está só começando, e o Brasil tem muito a ganhar com ele. Afinal, quanto menos tabus, melhor para todo mundo.
Fonte: F5
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