- Eu não sou mais "o cara", virei "um dos" - comenta, sem falsa modéstia, pouco antes de subir ao pequeno palco do Lapinha e mostrar que continua sendo... o cara, o maior violonista/guitarrista brasileiro.
Artistas de diferentes gerações avalizam. Ed Motta diz adorar Delmiro, e justifica:
- Acho que, no Brasil, o primeiro solo de guitarra no idioma jazzístico foi o que ele fez, brilhantemente, no LP "O som brasileiro de Sarah Vaughan". O tema é "Preciso aprender a ser só", de Marcos Valle, e o solo de Hélio é histórico.
O autor desse clássico, Marcos Valle, faz coro:
- O solo de Hélio em "Preciso aprender a ser só" é lindo, seu violão é memorável.
Para o trombonista e arranjador Vittor Santos, "Hélio explicita um Brasil jazzístico via Rio de Janeiro com elegância, vigor e maturidade".
Opinião compartilhada por muitos, incluindo músicos que, na quarta-feira retrasada, foram ao piano-bar na Lapa, feras como os também violonistas Yamandú Costa, Zé Paulo Becker, Leonardo Amuedo (guitarrista de Ivan Lins) e o saxofonista Zé Nogueira. Além do show no Lapinha - que, inaugurado há dois meses, aposta em uma programação diferenciada, de MPB e instrumental, para o velho bairro boêmio de tanto samba, rock, funk e afins -, o guitarrista tem feito um circuito meio off-Broadway, que incluiu o Sesc Tijuca, e, nesta semana, tem agendados shows no restaurante Otto (dias 19 e 20, na Tijuca e na Barra). Independentemente do tipo de palco, vale a pena assistir a esse carioca do Méier que completará 63 anos na próxima quinta-feira. Ele tem meia dúzia de discos solo brilhantes e também brilhou ao lado de divas como Clara Nunes, Elis Regina e Sarah Vaughan. O que nos leva de volta ao início da conversa.
- Adoro acompanhar cantoras, mas sofro de um preconceito. Em parte, por ter virado pastor, e também pelo processo que movi contra a PolyGram (atual Universal), que tirou minha foto da capa do disco com Sarah Vaughan - conta Delmiro, enquanto, no que pode parecer contraditório, degusta mais um cálice de vinho tinto. - Mas a Bíblia não diz nada contra o vinho, e sim que "tudo é lícito, mas nem tudo convém". Um dos dons é o domínio próprio. Baseado nisso, podemos até beber, é uma questão de autocontrole. E Jesus bebia vinho.
A fase religiosa mais radical do músico de Cristo passou. Em 1986, atormentado com a doença de duas filhas gêmeas - desenganadas pelos médicos -, e na roda-viva de shows, trocando o dia pela noite, Delmiro tomava banho quando foi capturado pela pregação de um pastor no rádio, que, após ler o versículo 35 do Livro de Isaías da Bíblia, pediu aos ouvintes que orassem. O guitarrista saiu do chuveiro, pegou uma toalha, ajoelhou-se e rezou.
- Uma semana depois, peguei a cocaína que tinha, muito boa, uma cocaína 12 anos, como o Luizinho Eça dizia, e joguei fora, junto com a maconha e as garrafas de uísque.
Em meio ao rebanho da Igreja Universal, logo chamou a atenção do Bispo Macedo, após ter dado um trato no disco de um artista evangélico. Veio então o convite para montar a gravadora da igreja.
- Aceitei, criei a gravadora, sugeri o nome, Line Records, mas, em menos de um ano, depois que tudo engrenou, fui passado para trás, já que não tinha assinado um contrato - conta Delmiro, que, como compensação, ganhou um templo para comandar. - Cresci como pastor, dirigi duas igrejas, sem nunca largar a música. Mas comecei a discordar da forma como eles tratavam os fiéis e saí da Universal.
Delmiro continua evangélico, mas, atualmente, é um pastor independente, desligado de qualquer denominação. Há, no entanto, resquícios de intolerância. Ele, que reclama sofrer de preconceito, diz que, hoje, não gravaria com Clara Nunes temas com referências aos cultos afro-baianos como "A deusa dos orixás", um dos marcos do disco "Claridade", que produziu em 1975. Dessa forma, não estaria repetindo o erro de um de seus ídolos no violão, Baden Powell, que, no fim da vida, ao virar evangélico, renegou a genial série de afrossambas com Vinicius? Essa postura não seria um forte combustível para alimentar o tal preconceito?
Delmiro tenta se explicar, diz que Baden engatinhava nos preceitos evangélicos, e que não tem restrição alguma aos afrossambas - "Como o 'Canto de Ossanha' , que eu toco" -, mas mantém parte do repertório de Clara Nunes em seu índex particular.
- Não vou cair nessa, foi assim que dancei, não teria as minhas filhas hoje - reafirma ele, falando em bruxaria, ao mesmo tempo em que no seu último CD solo, lançado em 2004 pela Deckdisc, "Compassos", gravou, sem receio, o standard "Witchcraft" ("Bruxaria"). - Mas ali é uma metáfora, é uma canção romântica.
Fonte: O Globo Online
----------------------