terça-feira, 1 de outubro de 2013

Em nome da erva: fiéis da “Igreja da Maconha” querem tirar seu líder da cadeia

Na “Igreja da Maconha”, uma Bíblia exibe a erva, considerada sagrada pelos rastafáris

Em nome da Erva

Playboy acompanhou a vigília pela libertação de Ras Geraldinho, fundador da primeira igreja rastafári do Brasil, em Americana (SP). Ele está preso desde agosto de 2012, quando a polícia encontrou 37 pés de maconha no local

Dezoito de agosto de 2013, domingo. Quase 4 da manhã. Acordo com o barulho de um pequeno grupo de homens, uns seis ou sete jovens, falando sobre seu grande feito da noite. Talvez o frio da madrugada e a posição desconfortável no sofá tenham favorecido meu despertar, mas a animação deles é de fato grande.

“A gente foi até o hotel do [Marcelo] D2 e entregou uma bandeira da Igreja pra ele”, me conta um gordinho com os olhos vermelhos. “Depois, lá no show, o D2 a pendurou na mesa do DJ. Ela saiu em todas as fotos!” O sujeito repete a história um bocado de vezes, aparentemente alheio aos meus comentários, que variam entre “que legal” e “nossa, que legal”.

Deus é Jah

Estamos em Americana, a 127 quilômetros de São Paulo, na Primeira Niubingui Etíope Coptic de Sião do Brasil, igreja fundada em 2011 e adepta do chamado movimento rastafári.

Surgida nos anos 1930 na Jamaica, a seita messiânica sustenta que a maconha é sagrada, Deus é Jah, os etíopes são o povo escolhido e o ex-imperador da Etiópia Hailé Selassié (ou Ras Tafari, nome que usava antes de sua coroação), morto em 1975, era Jesus Cristo reencarnado.

O líder rastafári antes da prisão, no alto, e a preparação de um cigarro da “erva sagrada” 

O que faço aqui?

Fui escalada para cobrir a “vigília pela libertação de Ras Geraldinho”, designação religiosa de Geraldo Antonio Baptista. Ele é o fundador e o líder da Igreja da Maconha, como ficou conhecida nacionalmente. Está preso desde 14 de agosto de 2012, quando a guarda municipal encontrou 37 pés de maconha na chácara onde fica a Primeira Niubingui.

Aos 53 anos, o ex-produtor de vídeo cumpre pena, em regime fechado, na Penitenciária de Iperó, também no interior paulista. Em maio de 2013, foi condenado a 14 anos, dois meses e 20 dias de prisão pelos crimes de tráfico de drogas e associação para o tráfico. Organizada pela namorada de Geraldo, a “cuidadora de idosos” Marlene Martim, 51, e pelo filho dela, Samir, 25, “fotógrafo, mas atualmente agricultor”, a vigília foi divulgada no Facebook e rapidamente angariou simpatizantes.

Dias antes do evento, a rede social me mostrava que mais de 3 mil internautas haviam sido convidados e os confirmados já beiravam os 300. Por isso, minha expectativa era grande, assim como a pretensão do encontro: articular um movimento nacional para jogar luz sobre a prisão e a condenação “injustas” de Ras Geraldinho.

Babilônia e capitalismo

A preparação de um cigarro da “erva sagrada” 

Dezessete de agosto de 2013, sábado. Quase 1 da tarde. Chego à igreja, no bairro de Praia dos Namorados. Ela fica no fundo de um terreno de 1.000 metros quadrados. Ocupa um espaço anexo à casa em que Geraldo morava e onde mora Samir. O portão está aberto. Entro e logo sou recebida por uma simpática Marlene, que avisa à queima-roupa: “Você sabe que vigília é a privação do sono, né?” Dou um sorriso amarelo, mais por estar verde de fome do que por qualquer outra coisa.

O encontro religioso está previsto para começar às 4h20 da tarde e terminar no mesmo horário no domingo. “É uma hora que o pessoal curte muito”, diz ela. O motivo: 20/4 é o Dia da Maconha; nos Estados Unidos, a data é grafada 4/20 – essa é apenas uma das explicações para a história. Papo vai, papo vem, Marlene cai na minha graça ao informar que o almoço está sendo preparado.

Na cozinha, cerca de 20 pessoas batem papo enquanto esperam pela refeição. A maioria são homens que se dizem universitários e com pinta de classe média. Tem gente de São Paulo, do interior (Jundiaí, Campinas e Salto, entre outras cidades), do Rio de Janeiro. Em dado momento, a conversa envereda pelo uso medicinal da cânabis.

Ras Geraldinho, Buda, Jesus Cristo, um preto velho, Merlin (sobre o altar) e Bob Marley: “Livre exercício dos cultos religiosos” 

“E aquele vídeo que a menina na cadeira de rodas fala que só a maconha consegue aliviar a dor dela?”; “E aquele que mostra que óleo de haxixe pode curar câncer de pele?” Até que o campineiro Renato, um desempregado que veste uma camiseta com o rosto de Bob Marley, traz à tona “os problemas da Babilônia e do capitalismo”.

Todos seguem sua deixa. “Pra que o mundo tá desenvolvendo iPhone 5, coisas assim, se tem muitos morrendo de fome?”, questiona um rapaz que diz ser estudante de direito da USP (Universidade de São Paulo) e tem no rosto reluzentes óculos Ray-Ban. Eis que um inconfundível aroma, vindo de outra parte da chácara, tira Renato do prumo. “Esse cheirinho tá me provocando. Acho que vou pegar o meu lá no carro…”, diz, rindo.

A poucos metros de nós, Marlene abandona o fogão e caminha até uma espécie de altar sobre o qual estão uma imagem de Jesus, um Buda, um preto velho, o mago Merlin e uma foto do Geraldo. Ela acende duas velas e um incenso. Em meio ao clima de descontração, parece ser a única focada no real objetivo da vigília. Agora são quase 2h30.

O almoço logo é servido: arroz integral, salada e omelete de queijo.

Liberdade religiosa

Longe dali, a defesa de Geraldo tenta tirá-lo da prisão. “Estamos aguardando o julgamento de uma apelação no Tribunal de Justiça de São Paulo”, explica o advogado Alexandre Khuri Miguel. Numa outra frente, em abril deste ano o servidor Mauro Chaiben entrou com um pedido de habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça.

Chaiben trabalha no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e se ofereceu para ajudar o líder rastafári. “É um trabalho ‘por caridade’”, diz, “pois essa é uma situação que entendo como injusta.” O cargo que ocupa o impede de advogar, mas ele explica que “a Constituição garante que qualquer cidadão pode impetrar um habeas corpus”.

Jovem lê a “Oração de Consagração”: a vigília, além de produzir muita fumaça, teve momentos de reflexão e prece

Uma das principais críticas de Miguel à decisão do juiz Eugênio Augusto Clementi Júnior é “seu tom preconceituoso”. “Ela saiu exatamente no dia da abolição da escravatura, 13 de maio, condenando um seguidor de uma religião negra. Não é tão coincidência assim”, afirma. Mais: segundo Chaiben, o magistrado “aplicou uma pena alta sem apontar os fundamentos”.

O promotor do caso, Clóvis Siqueira, é taxativo ao falar sobre a igreja: “O local era destinado ao consumo da maconha e frequentado por viciados que chegavam a pagar 10 reais para entrar. Tratava-se de um evidente ‘self-service’ da droga”. A existência da taxa ensejou a acusação de tráfico.

Marlene, apontada como tesoureira da igreja, pondera: “Era uma contribuição para manter o espaço, mas a maioria das pessoas não deixava esse valor”. Geraldo, conta a namorada, sentia-se amparado pelo inciso VI do artigo 5º da Constituição Federal, que garante a “liberdade de consciência e de crença” e “o livre exercício dos cultos religiosos”.

Siqueira rebate: “O livre exercício de cultos religiosos, assim como as demais liberdades públicas, não possuem grau absoluto, não sendo possível a qualquer religião atos atentatórios à lei, sob pena de responsabilidade civil e criminal”.

“Faz dois anos que eu, a cada 15 dias, frequento a Primeira Niubingui. Se houvesse tráfico, jamais teria vindo aqui, pois isso seria contra meus princípios profissionais”, diz por sua vez uma advogada que pede para ter seu nome preservado. “Acho que o Poder Judiciário entendeu a história de uma forma totalmente equivocada. A sentença não tem fundamentação alguma”.

Moradora de Itatiba, a 72 quilômetros de Americana, ela é uma das pessoas que testemunharam, em juízo, em favor de Geraldo.

Roda esfumaçada

Quase 4 da tarde. Começa a ser organizada a abertura da vigília. Chegou mais gente. Pelos meus cálculos, agora somos cerca de 30. Numa área aberta, próxima à cozinha, Samir dispõe tapetes e almofadas pelo chão e pede que o pessoal se acomode formando uma roda. Já sentados, jovens apertam seus baseados calmamente, mas são instruídos a aguardar, “para que todos acendam juntos”.

Cada um de nós recebe uma folha com um texto intitulado “Oração de Consagração”. O relógio marca 4h20. Os cigarros são acesos e começam a rodar no sentido anti-horário. A instrução é para mentalizar a figura de Ras Geraldinho.

Marlene chora, fecha os olhos e sussurra algo ininteligível. Uma jarra de água é colocada no centro do círculo. É a salvação daqueles que tossem como se estivessem nas últimas. Quando os baseados se reduzem a pontas, o ambiente é tomado por uma voz que lembra a do Cid Moreira. Emanando de um aparelho de som, ela narra a “Oração da Consagração”.

Marlene, na área onde havia os pés de maconha 

O trecho mais curioso me parece este: “Pelo símbolo Esotérico das Asas Divinas, estou em vibração harmoniosa com as correntes universais da Sabedoria, do Poder e da Alegria”. Tenho a impressão de que a maior parte da turma está dispersa (um rapaz, visivelmente entediado, mexe no celular). Culpa, talvez, dos efeitos da “erva sagrada”, que já se manifestam em alguns – e se prolongam em outros.

Assim que a prece termina, somos convidados a conhecer o tabernáculo, numa salinha à nossa esquerda.

De Mujica a Lady Gaga

Começa a anoitecer quando algumas pessoas se reúnem ao redor de uma fogueira. Perto dela, músicos amadores mostram seu… ok, talento. Surpreendentemente tocam por 37 minutos antes de introduzir Queimando Tudo, hino do Planet Hemp. Durante o “show”, Rodrigo, universitário de São Caetano do Sul, encontra uma brecha para perguntar quando será feita a reunião para definir os próximos passos do movimento pela libertação de Geraldinho.

É ele mesmo quem responde, sem esconder certo desapontamento: “Acho que o papo sério vai ficar para mais tarde”. Enquanto isso, uma garota lança mão de um aplicativo no celular que permite identificar as estrelas e outra publica no Facebook fotos do fogaréu. São quase 10 da noite. Metade daquelas 30 pessoas já se foi.

O falatório acerca da “relação de 10 mil anos entre o homem e a maconha” provocou uma epidemia de sono. Marlene vai descansar em uma das camas da chácara. Uma carioca especula sobre a vida no Brasil caso a cânabis fosse legalizada: “Imagina a primeira Marcha da Maconha com ela legal? Vai ser a festa da maconha!” Risadas. Fumaça.

O descontraído “luau” 

Uma hora e meia mais tarde, um pequeno grupo se movimenta para deixar a igreja. “A gente vai ao show do D2 que tá rolando na cidade. Tá a fim, Brunna?”, me pergunta Júnior Áli, 33 anos, vice-presidente da Primeira Niubingui. Prefiro ficar. Estou cansada e com sono. Não, não fumei nada. Mas, talvez, tenha ficado “louca” por tabela.

Faço um esforço hercúleo para manter os olhos e os ouvidos abertos.

“Cara, não é possível que o capitalismo vá continuar aí até todo mundo se matar”, teoriza um rapaz. “Acho que a gente vai ver o fim da proibição das drogas. E não vai demorar muito. [José] Mujica [presidente do Uruguai] é o cara”, diz outro.

Em meio a opiniões diversas sobre assuntos aleatórios, Rodrigo me pergunta se gosto de Lady Gaga. É o momento de eu ir descansar um pouco.

Não existe tempo ruim

No domingo de manhã, o que atrai a atenção das cerca de dez pessoas que restam na chácara é uma pequena muda de maconha. Júnior me mostra onde fica a concentração do THC, princípio ativo da erva. Faltando poucas horas para o fim da vigília, o grupo liga um notebook à TV, posta sobre o altar.

No YouTube, um vídeo vai ao encontro das teorias ali levantadas em relação ao poder medicinal da maconha. Todos se deleitam. Ao filme segue o manifesto dos Visionários do Caminho, movimento liderado pelo ativista norteamericano Garret John que “pretende unir todos os ‘visionários’ do mundo”.


Durante a exibição, um dos rapazes ao lado dispara: “Olha aí, somos nós”. Restam poucos minutos para as 4h20. Os presentes se sentam em círculo. Marlene, emocionada, agradece o apoio. Um jovem chamado Fernando pede a palavra: “Vamos deixar o cérebro fluir nessa consagração da erva para termos ideias para o aniversário do Geraldo, em 30 de setembro”.

Ele toca um sino, e o ritual começa. Do rádio vem uma música daquelas que reproduzem sons da natureza (cachoeira, periquito…). Passa um tempinho, Marlene se levanta. Chorando, abraça um por um. A música já é outra: Tempos de Flor, da banda Mato Seco. O refrão gruda na minha cabeça: “Estamos salvos pelo Pai e não existe tempo ruim”.



Fonte: Veja
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