Você, leitor cristão, imagine-se na seguinte situação: depois de uma abençoada reunião de oração e estudo da Palavra de Deus, é hora daquela gostosa comunhão regada a comes e bebes. Ato contínuo, o dono da casa abre uma garrafa de vinho e oferece a bebida aos presentes. Se você acha que se sentiria constrangido e inseguro entre aceitar e ser criticado pelos outros ou recusar e perceber, meio sem graça, que todos provaram da bebida, saiba que não está sozinho. A maioria dos evangélicos já passou por situação semelhante, se não na casa de irmãos na fé, no ambiente de trabalho ou no lazer com amigos. Consumir álcool, para os crentes brasileiros, é mesmo como um tabu, e até aqueles que são membros de denominações ou grupos cristãos mais liberais em relação ao assunto têm certa preocupação em serem vistos com o copo na mão.
O que a maioria dos evangélicos brasileiros desconhece é que esta visão estigmatizada acerca do álcool é coisa muito recente na história da Igreja. Ao longo de quase 2 mil anos de cristandade, prevaleceu a noção de que a bebida, em si, é neutra, uma dádiva do Senhor que traz alegria – sendo o seu consumo excessivo, ou embriaguez, esta sim, pecaminosa. De fato, muitos crentes se escandalizariam ao descobrir que, na galeria dos heróis da fé protestante, homens e mulheres de Deus consumiam bebida alcoólica, e ficariam surpresos por saber que certos segmentos da Igreja, em nome do abstencionismo, alteraram até mesmo um dos ritos mais importantes, ao lado do batismo: a celebração da eucaristia. O detalhe é que o vinho é mencionado reiteradamente nas Escrituras, tanto no sentido literal como por expressão poética. E o produto da uva era parte fundamental da cultura, da religiosidade e da economia do povo hebreu, desde sua origem.
Em relação ao álcool, os cristãos se dividem basicamente em três correntes: os abstêmios, que optam por beber eventualmente, mas não combatem quem pensa diferente; os temperantes – ou moderacionistas, que assumem beber em determinadas circunstâncias e com moderação –; e os proibicionistas, que advogam a condenação total ao ato de beber álcool. Por aí, já se tem uma noção do tamanho do problema. Com ascendência religiosa ligada ao arminianismo das tradições batistas do sul dos Estados Unidos e ao pentecostalismo clássico, o movimento evangélico brasileiro tende historicamente à rejeição total ao álcool, posição que, no entanto, tem tantas motivações culturais quanto espirituais. E a prática evangelística dominante no país, muito pautada na oposição ao catolicismo, faz com que a maioria dos evangélicos brasileiros se surpreenda ao descobrir diferenças culturais marcantes entre eles e os cristãos de outros povos, em especial os europeus. De fato, na Europa, até mesmo os pentecostais não costumam ter qualquer pudor diante de um canecão de vinho ou de uma reluzente tulipa de cerveja.
“Depois de ter vivido em diversos países, tenho percebido que a questão da bebida está mesmo muito ligada à cultura dos missionários que chegaram a cada região”, confirma o bispo Josep Rossello Ferrer, moderador da Igreja Anglicana Reformada no Brasil. No Velho Mundo, os cristãos veem o ato de beber com maior normalidade que os americanos, por exemplo – por isso, muitas práticas na Igreja brasileira de hoje são frutos de ideias religiosas oriundas dos Estados Unidos, o que explica porque as denominações surgidas do esforço missionário americano do século 19 (batistas e presbiterianos, por exemplo), guardem em sua memória a visão abstencionista.
Líder de uma comunidade anglicana em Pindamonhangaba (SP), Ferrer, que é espanhol, observa que sua organização religiosa não tem uma posição oficial sobre o assunto. “Entendemos que a decisão de beber ou não é uma questão de liberdade cristã. Alguns irmãos podem usar álcool sem nenhum problema de consciência, enquanto outros entendem que isso seria pecado”. Por isso, o sacerdote faz questão de não tratar o assunto como dogma. “Não se pode afirmar que a Bíblia condena a bebida. Encontramos nas Escrituras avisos claros contra o estado de embriaguez, que leva à perda do controle dos sentidos, mas não vemos nenhuma restrição ao consumo moderado.”
MODERAÇÃO SEM CONDENAÇÃO
Tal visão encontra reflexo na opinião de muitos crentes. Para o fotógrafo e missionário Eduardo Ferreira, 39 anos, de tradição batista (é neto de pastor) e hoje ligado à Igreja Bola de Neve, o episódio bíblico em que Cristo transforma água em vinho é emblemático: “Acho que havia uma lição extra ali”. Recentemente retornado do Havaí (EUA), onde praticava surfe e liderava uma célula de crentes, ele observa que a questão cultural não pode mesmo ser deixada de lado na análise da questão, mas recomenda cuidado. “No exterior, convivi muito com cristãos que consumiam álcool com moderação, da mesma maneira como presenciei pessoas estragando suas vidas com bebida”. Para Duda, como é conhecido, o potencial destrutivo do álcool explica porque mesmo o uso moderado do vinho seja um escândalo para crentes brasileiros. “O choque cultural é real. Lembro-me de ter recebido, na minha célula aqui no Brasil, um casal francês que trouxe uma garrafa de vinho para a Ceia. Houve constrangimento entre os presentes. Eu acho que não faria qualquer diferença, mas, naquele contexto, o incômodo dos irmãos foi, por si só, razão para manter a garrafa fechada.”
“O tema sempre será delicado, e por isso devemos tratá-lo biblicamente, mas nunca na base do ‘pode ou não pode’”, opina, por sua vez, Hernandes Dias Lopes, pastor e escritor de confissão presbiteriana. “Este é um caminho que pode construir uma ética farisaica e uma espiritualidade rasa”. Para Hernandes, há uma dificuldade bíblica de se fazer uma defesa radical pela abstinência, de maneira que a questão deve ser ponderada. Ele lembra que a ética cristã não se baseia somente no direito ou na consciência de cada um, mas no direito do outro e no amor ao próximo. “Dessa maneira, não se pode fechar os olhos para a realidade de tantas tragédias pessoais decorrentes da bebida e das perspectivas da juventude brasileira, que está sendo consumida pelo álcool”.
Hernandes alerta que as igrejas nem precisam olhar para fora para constatar a imprudência no consumo do álcool, mas atentar para a secularização vista nas congregações hoje: “Tenho ido a casamentos de crentes a cujas cerimônias seguem-se festas suntuosas regadas a todo tipo de bebida. O que se passa é que, no fim da festa, até mesmos cristãos são vistos saindo desses repastos com as pernas bambas”. Se beber pouco ou muito é motivo de escândalo para um irmão, acrescenta Hernandes, “então eu devo abster-me de beber”. Princípio, segundo ele, que deve nortear de resto qualquer atitude do crente.
“Pensar que o álcool é intricadamente ruim é atribuir mal a Deus, que o fez”, avalia o pastor episcopal Carlos Moreira, 46 anos, de Recife (PE). “Deus é santo, e em Salmos 104.15 aprendemos que ele fez o vinho, que alegra o coração do homem, assim como o azeite que faz reluzir o seu rosto e o pão, que lhe fortalece”. Defensor da moderação, Moreira conta que certa vez foi flagrado por um membro de sua paróquia enquanto consumia cerveja em um restaurante. “Com tom condenatório, aquela pessoa perguntou-me como eu podia estar bebendo”. A resposta, simples e até bem humorada – “Minha irmã, não quero e nem posso ser melhor do que Jesus” –, sintetiza a preocupação do pastor com o legalismo. “O legalista não está satisfeito com os padrões da justiça de Deus. Ele arrogantemente pensa que pode fazer melhor que o Senhor – legisla ele mesmo, segundo as suas próprias aspirações religiosas. Assim, proíbe o que Deus permite e, como resultado, muitas vezes permite que Deus proíbe.”
Carlos Moreira reconhece a gravidade do problema do alcoolismo e afirma que nenhum cristão, em sã consciência, deve oferecer motivo de tropeço a um irmão sob o jugo desta doença. “Contudo”, pondera, “essa lógica de que devemos eliminar alguma coisa por completo de nossas vidas porque há quem abuse da liberdade de usá-la não me parece uma atitude compatível com a nossa liberdade cristã, e nem com o exercício de maturidade que esta envolve”. O pastor lembra que o reformador Martinho Lutero resumiu esta perversão que força uma religiosidade vazia com um comentário provocativo: “Ora, os homens são levados ao erro por conta de mulheres e bebidas. Deveríamos nós abolir as mulheres?”, cita. Para Moreira, a ética cristã não possibilita que se traga escândalo ao irmão, o que é um conceito aplicável a situações específicas – “Caso de um crente novo na fé, por exemplo” –, não uma regra geral: “Considere o caso de Jesus, nosso padrão de santidade perfeita, que consumia vinho com os seus apóstolos com regularidade e sem fazer nenhum segredo disso”. A quem estranhar tal afirmação, o pastor explica que a própria Bíblia registra que o Filho de Deus foi caluniado pelos fariseus por não seguir o seu rigor ascético, entre outros aspectos, por se dar ao excesso de bebida e comida. “Não me parece que Jesus se importasse em escandalizar fariseus”, conclui.
“BÊBADO DO DIABO”
A questão da bebida é tratada no primeiro catecismo cristão de que se tem registro, a Didaquê, do primeiro século. Ali, fica claro o uso livre do vinho, seja na eucaristia ou no consumo cotidiano dos irmãos. De fato, havia até mesmo uma instrução determinando a existência de um reserva da bebida da comunidade para os profetas visitantes. Clemente de Alexandria (que viveu aproximadamente entre os anos 150 e 215 da Era Cristã) julgava absolutamente justo ao homem consumir a bebida para o seu relaxamento e defendeu fortemente a presença obrigatória do vinho na Ceia do Senhor. O fim do Império Romano, no século 5, fez surgir o modelo econômico feudal, no qual os mosteiros, abadias e outras estruturas religiosas passaram a produzir os seus víveres – e o vinho era item fundamental, não apenas na dieta, mas para as celebrações religiosas. A cerveja também era produzida e largamente consumida pelos religiosos. Tanto, que a Igreja relacionou diversos santos à produção do álcool, como São Adriano e São Armando – padroeiros dos cervejeiros e dos donos de taverna – e São Martinho e São Vicente, considerados protetores do vinho e dos vinicultores.
A Reforma Protestante é marcada pelo retorno às Escrituras, mas também pelo esforço dos reformadores em romper com as tradições católicas o quanto fosse possível, estabelecendo uma distância não apenas teológica, mas também cultural. Contudo, a visão dos reformadores quanto ao consumo da bebida não recebeu novo escrutínio, ao contrário: eles doutrinaram a Igreja a receber a bebida como uma bênção de Deus e a usufruir dela com moderação, não se deixando dominar por ela. Lutero consumia vinho e era conhecido como um grande bebedor de cerveja, produzida por sua esposa, Catharina. Já João Calvino recebia como parte de seu salário anual da Igreja Reformada suíça sete tonéis de vinho. Até os principais tratados de fé escritos nesse período – como a Confissão belga, o Catecistmo de Heidelberg e a Confissão de Westminster – faziam clara menção ao uso do vinho.
E também os puritanos, sempre tão associados a um padrão frugal e conservador de comportamento, não dispensavam uma caneca. O navio Mayflower, que os trouxe ao novo mundo, carregava mais cerveja do que água – quase 30 mil da bebida. E, ao desembarcarem, em Plymouth Rock, terra que no futuro pertenceria aos Estados Unidos da América, não construíram em primeiro lugar uma vila ou uma capela, e sim, uma cervejaria. Increase Mather, clérigo renomado, presidente da Universidade de Harvard e protagonista dos célebres julgamentos relacionados a bruxaria em Salem, resume o ponto de vista dos puritanos sobre o tema em seu sermão Ai dos bêbados, de 1673: “A bebida é em si uma criação pura e boa de Deus, e deve ser recebida com gratidão, mas o abuso de bebida é de Satanás; o vinho é de Deus, mas o bêbado é do diabo.”
O movimento metodista nas Ilhas Britânicas marca o início da mudança da visão da igreja em relação ao consumo do álcool. O célebre evangelista John Wesley, no século 18, foi um dos primeiros a se insurgir contra os excessos de bebida entre os crentes, e também pioneiro na articulação de um movimento de proibição do seu uso. Em seus sermões, Wesley reprovava o uso não-medicinal de bebidas destiladas, como conhaque e uísque, e dizia que muitos destiladores que vendiam seus produtos indiscriminadamente não eram nada mais do que “envenenadores e assassinos amaldiçoados por Deus”. Novamente, o contexto histórico-cultural não deve ser ignorado. À época, com o advento da Revolução Industrial, as cidades não ofereciam infraestrutura suficiente para atender às demandas da população que afluía do campo para trabalhar nas fábricas. Faltava água potável e as bebidas destiladas e fermentadas eram largamente usadas. O ambiente de miséria, somado à embriaguez endêmica, resultou em um grave problema social.
O movimento de temperança surge, em princípio, como reação da Igreja ao sério problema de saúde pública provocado pelo alcoolismo nos Estados Unidos. A maioria dos estudiosos concorda que o marco zero foi a publicação, em 1805, de um folheto de autoria do médico Benjamin Rush tratando dos males do álcool. Pela primeira vez, foi introduzida a noção de vício potencial inerente ao consumo de bebidas destiladas e o autor prescreve a abstinência como única cura. Rush, presbiteriano, foi um dos signatários da Declaração de Independência americana e fundador da Sociedade Bíblica da Filadélfia. A relevância do autor explica o impacto que a sua obra recebeu na sociedade.
O arcebispo episcopal William Mikler, do Apostolado para as Nações, com sede nos Estados Unidos e igrejas em todo o mundo, incluindo o Brasil – país que visita com regularidade –, lembra que este não era um movimento apenas religioso. “Envolvia uma grande disputa por espaço político e, aos poucos, sob o entulho do farisaísmo, foi tomando conta da Igreja, chegando ao ponto de banir o vinho da Ceia do Senhor, o que vai diretamente contra a um mandamento de Cristo.” O resultado, explica, foi a defesa do proibicionismo como política de Estado, um dos motivos da Lei Seca – emenda à Constituição americana que proibiu a venda e o consumo de álcool no país. O tiro acabou saindo pela culatra, aumentando o consumo no país e estimulando as destilarias clandestinas, a exploração ilegal da indústria de bebida e o crime organizado.
Para Mikler, a questão do alcoolismo, naturalmente, merece a atenção da Igreja, mas o grande erro do movimento de temperança foi construir uma teologia apontando a bebida como algo inerentemente mau, justificando, assim, a retirada do vinho da Ceia. “Isto foi uma dupla ofensa: A Deus, que deu o vinho ao homem, e a Jesus, que escolheu este elemento para a Ceia.” Mais tarde, quando o metodista Thomas Welsh desenvolveu um processo de tratamento do caldo prensado da uva capaz de conservar a bebida sem promover a fermentação alcoólica – o chamado mosto –, deu-se a substituição do vinho na comunhão.
Desde então, há até gente que defenda a tese de que a bebida consumida por Jesus não era alcoolica. Rodrigo Silva, funcionário público e pastor da Igreja Presbiteriana Independente em Rondônia, rechaça essa ideia usando a própria passagem bíblica que narra o milagre da transformação da água em vinho. “Não bastasse a incoerência de tal afirmação com o comentário registrado nas Escrituras, quando alguém ali estranhou receber o ‘bom vinho’ àquela altura da festa, o vocábulo grego para definir a bebida servida por Cristo – ouinos – é o mesmo usado em todo o Novo Testamento em referência ao vinho alcoolico comum”. Mesmo assim, ele passa longe do copo, e tem bons motivos para isso. “Sou filho de pai alcoólatra, e a bebida destruiu não só seu casamento dele, como minha própria relação com ele. Por causa desse trauma eu não bebo, mas não recrimino quem o faça.”
LÍCITO x CONVENIENTE
Associados, na Palavra de Deus, a uma série de problemas – caso de Noé e Ló, personagens bíblicos, que cometeram desatinos quando embriagados –, exageros com o álcool trazem não apenas malefícios espirituais, como a ruína de famílias, episódios de violência e vidas destruídas. O estigma social do álcool é tão intenso que muitas igrejas evitam até mesmo o vinho na celebração da Ceia. “Fazemos isso por consideração àqueles irmãos já enfrentaram ou ainda têm problemas com o alcoolismo”, explica o pastor Paulo Cesar Brito, líder da Igreja Missionária Evangélica Maranata, do Rio de Janeiro. Como também é médico, Brito sabe bem quais são os efeitos do álcool no organismo humano e que basta uma pequena dose para trazer de volta um vício devastador que, muitas vezes, foi deixado para trás graças à fé. Por isso mesmo, nas congregações de sua igreja, os pequenos cálices da comunhão trazem apenas alguns mililitros de suco de uva – o bastante, no seu entender, para manter o simbolismo e o significado espiritual do ato.
Mas tal posicionamento já foi (e continua sendo) alvo de polêmica. O teólogo reformado Keith A.Mathison é autor de trabalhos respeitados sobre o assunto. Ele acredita que a retirada do vinho da Santa Ceia é uma questão que desafia qualquer principio ordenador que se use na Igreja protestante. Em um de seus artigos mais recentes, Mathinson lembra que a noção do princípio regulador do culto– segundo o qual, no culto de Deus, o que não é ordenado é proibido – é ignorado por completo “quando o assunto é a mudança de um elemento na celebração do mistério da Ceia do Senhor”.
As igrejas reformadas subscrevem formalmente este princípio. Mathison lembra a história de Nadabe e Abiú, narrada em Levítico 10, para ilustrá-lo. “Deus emitiu comandos específicos sobre como devia ser adorado. Nadabe e Abiú decidiram que seria aceitável mudar algo. Ao fogo estranho, Deus respondeu com destruição”. Para o autor, Jesus instituiu a Ceia com pão e vinho, e não há autorização para mudar isso, assim como não se pode suprimir a água no sacramento do batismo.
O pastor presbiteriano e chanceler do Instituto Mackenzie, Augusto Nicodemos Lopes, contemporiza: “Não creio que princípio regulador seja tão abrangente a ponto de exigir que seus defensores tenham que usar o vinho. Ele trata de princípios que regem o culto público, e o uso de vinho ou suco de uva é uma questão de circunstância, e não de elemento de culto ou de princípios.” Nicodemos lembra que, mesmo no Brasil, não existe uma unanimidade entre os reformados sobre o uso do vinho ou de suco na Ceia. “Fica a critério das igrejas locais. Fui pastor da Igreja Suíça de São Paulo onde se usa vinho. E pastoreei igrejas presbiterianas onde se usava ou um ou outro. Isso vai muito da mentalidade do pastor e do Conselho.”
A predominância da visão abstencionista, nas denominações históricas, não é manifestada oficialmente. “O que não acontece entre os pentecostais, neopentecostais e grupos afiliados ou oriundos destes”, observa o advogado Thiago Lima Barros, pesquisador da história da Igreja : “Esses grupos são os únicos que elevaram tais restrições ao status de doutrina; se não na teoria, pelo menos na prática diária”. Para ele, a importância do movimento pentecostal e sua influência sobre toda a Igreja Evangélica brasileira explica muito a posição predominante em relação ao álcool no Brasil – “E não apenas neste aspecto, mas toda uma tradição de usos e costumes”, completa. Diácono da Igreja Nova Aliança, Barros lembra que, em 1946, na 22ª reunião da Convenção Geral das Assembleias de Deus, realizada em Santo André (SP), deliberou-se oficialmente sobre vestuário, aspectos da aparência e, claro, abstenção de bebidas alcoolicas. “Tais posições só encontraram algum relaxamento em 1999, por ocasião do 5º Encontro de Líderes da denominação, onde aquelas exigências foram contextualizadas, ainda que sem se abrir mão da importância dos usos e costumes como prática saudável e de identidade da igreja.”
O diácono oferece um posicionamento conciliatório: “Nenhum cristão realmente nascido de novo em Cristo vai defender libertinagem ou embriaguez, que são posturas de evidente mundanismo. Precisamos, de fato, ser santos como o nosso Senhor o é, e não jogar o bebê fora junto com a água do banho”. Pastor da Assembleia de Deus, a igreja que foi a principal responsável por essa influência, Ciro Sanches Zibordi cita o texto de Efésios 5.18 para enfatizar a importância de o crente ser dominado pelo Espírito Santo. Ele justifica a abordagem mais conservadora da denominação com um argumento baseado na história e na realidade social da expansão assembleiana. “Como se sabe, a igreja Assembleia de Deus sempre atuou entre as pessoas mais carentes, em favelas e morros, por exemplo, onde muitos alcoólatras são transformados radicalmente pelo poder do Evangelho. Não faz sentido dizer a pessoas que foram libertas de maneira sobrenatural de um vício que elas podem continuar usando com moderação a substância que abandonaram.”
Autor de títulos como Erros que os pregadores devem evitar e Evangelhos que Paulo jamais pregaria (ambos editados pela CPAD), o pastor, que atua na Assembleia de Deus do Ministério de Cordovil, no Rio de Janeiro, afirma que todo patrulhamento deve ser evitado: “Ninguém tem o direito de interferir na individualidade e na privacidade das pessoas salvas em Cristo”. De fato, mesmo o apóstolo Paulo, tão radical nas regras de conduta que prescreveu à Igreja primitiva em suas epístolas, mostrou-se transigente em relação à bebida. Ele chegou a recomendar a seu filho na fé e colaborador ministerial Timóteo que usasse “um pouco de vinho” para melhorar suas enfermidades digestivas.
“A Palavra de Deus é um livro de princípios, e isso deve ser levado em consideração quando tratamos de assuntos tão delicados como o consumo de bebidas alcoolicas”, continua o pastor Zibordi. Por outro lado, pondera, um líder cristão consciente pode e deve pregar contra o uso da bebida e seus efeitos. “Tudo o que um alcoolatra precisa é de uma transformação radical, ao invés de uma orientação dúbia. Logo, a despeito de a Bíblia não condenar a bebida alcoólica pela força de mandamento, ela mostra que nem tudo o que lícito é conveniente para o cristão, conforme I Coríntios 6.12”.
Entre o copo e a fé
Ao longo da história, a visão do povo de Deus acerca do vinho e outras bebidas alcoolicas tem variado muito:
Antigo Israel
O vinho é parte central da história, da cultura e da religiosidade do povo hebreu. Presença obrigatória nas celebrações, a bebida é citada no Antigo Testamento como sinônimo de alegria e fartura. Por outro lado, a embriaguez sempre é condenada e aparece como causadora de graves delitos (lascívia, incesto, homicídio, traição).
Novo Testamento
Cristo transforma água em vinho e inclui a bebida em sua Ceia com os discípulos. Paulo, em suas mensagens às igrejas da época, adverte que bebedores contumazes não herdarão o Reino dos céus – contudo, recomenda que Timóteo use um pouco da bebida por causa de suas enfermidades estomacais e que presbíteros e bispos não sejam dados “a muito vinho”.
Primeiros séculos da Igreja
O vinho é considerado uma dádiva de Deus. A posição predominante é a da temperança – uma das quatro virtudes cardeais do cristão – no consumo, já que bebida pode ser fonte tanto de alegria como do mal. Os catecismos escritos pelos pais da Igreja vão na mesma direção e consideram o elemento essencial à Ceia do Senhor.
Idade Média
Por conta da necessidade nas celebrações religiosas e das características do sistema econômico feudal, a Igreja, através de seus mosteiros e abadias, se torna a grande referência na fabricação de vinho e cerveja. As condições climáticas da Europa impulsionam o consumo do álcool e os cristãos seguem um padrão pródigo para com a bebida. Diversos santos são associados à vinicultura e às artes da cervejaria e os monges tornam-se mestres na produção e aperfeiçoamento da fabricação. Por outro lado, o excesso no consumo é comparado à gula, um dos sete pecados capitais.
Reforma Protestante
Reformadores como Calvino e Lutero consumiam vinho e cerveja. A posição majoritária da Igreja continua sendo a do uso de álcool de forma responsável e moderada.
Movimentos cristãos dos séculos 17 e 18
A bebida fermentada é parte da celebração cristã e motivo de júbilo para os puritanos. Tanto, que ao chegaram aos Estados Unidos, eles tratam de construir cervejarias. Já o metodismo marca o primeiro grande movimento pela abstinência, com John Wesley, tendo em vista as bebidas destiladas. Os dois grupos, no geral, consideram lícito o consumo moderado de vinho e de cerveja.
Movimento da temperança (séculos 19 e 20)
Apesar do nome, foi uma iniciativa proibicionista. Seus defensores afirmavam que o álcool era um mal em si, e portanto deveria ser evitado pelo cristão e não estar associado à Ceia do Senhor – posição conflitante com a história da Igreja até ali. Com força política, os temperantes influenciam na aprovação da Lei Seca nos EUA. Pela primeira vez, a visão abstencionista supera a moderacionista (ou temperante) entre os protestantes do continente americano.
Hoje
A defesa da abstinência ao álcool predomina entre os evangélicos dos EUA e da América Latina, sobretudo entre pentecostais, mas também com forte apelo entre cristãos reformados e tradicionais. A abstenção é defendida como virtude, inclusive com vistas ao bom testemunho cristão perante incrédulos, por conta do estigma social da bebida – mas também na família da fé, sobretudo em relação a pessoas mais fracas na fé ou oriundas do alcoolismo. Na Europa, contudo, os cristãos consomem bebida – sobretudo vinho e cerveja – regularmente, o que reforça a tese da influência cultural no hábito.
Fonte: Danilo Fernandes em Cristianismo Hoje
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