"Eu acho a vida uma merda, apesar de seus encantos. Já nascemos condenados". O desabafo foi feito por Oscar Niemeyer, em maio de 2011. Ao ser questionado ao que estávamos condenados ao nascer, ele disse: "a desaparecer", desabafou o arquiteto que àquela altura já acumulava 103 anos de idade e ainda reclamava como se a morte lhe estivesse próxima. No seu caso, a "sentença" demorou mais 19 meses para ser cumprida. Ao morrer na noite de quarta-feira, Niemeyer já contabilizava 104 anos e 355 dias de vida.
Apesar disto, nesta entrevista, que foi gravada pelas câmaras da TV Brasil, em maio de 2011, e nunca divulgadas, na qual a proposta inicial era falarmos de Darcy Ribeiro, Niemeyer declarou que, com mais de 100 anos, uma obra admirada mundialmente, inúmeros prêmios recebidos, ele achava que lhe faltaram momentos importantes na vida. Na conversa, ele falou um pouco sobre tudo. Da amizade e do respeito que tinha por Darcy, à sua admiração Leonel Brizola, mas, apesar da voz baixa, se empolgava ao falar de Luiz Inácio Lula da Silva Lula e, embora não tenha querido compará-los, não titubeou em mostrar a diferença entre ele e Juscelino Kubitschek de Oliveira, seu grande amigo.
Como não poderia deixar de ser, reafirmou sua posição de comunista, que manteve até seus últimos dias, e lembrou as perseguições no período da ditadura: "Me lembro que fui chamado na polícia umas duas ou três vezes. Na última, eu vinha da Europa". Em seguida, resumiu: "Não sofri, como outros amigos que foram presos, apanharam, conheceram a tortura. Nada disto ocorreu comigo. Eles tinham prazer em me levar para a polícia e fazer inquérito."
Ao falar de suas obras, ele lembrou a Igreja de São Francisco de Assis, na Pampulha, em Belo Horizonte (MG), como aquela que mais se aproximou do projeto original. Ainda defendeu os Cieps, como "algo que ia revolucionar o ensino" e o Sambódromo, lamentando apenas que tenham acabado com as salas de aula que funcionavam nos camarotes, durante o ano letivo. No fim, resumiu: "Sambódromo é a festa, feito carnaval, a festa do povo."
Na conversa, um comentário de Niemeyer pode ser entendido como uma receita de um homem que se dizia comunista e ateu, para o sucesso de sua passagem entre nós: "a vida é mulher do lado e o resto seja o que Deus quiser".
Nesses 100 anos que o senhor já viveu, qual o momento mais importante? O que mais o marcou?
Ah, não tive momento importante. Se existiram, certamente não foi na Arquitetura. Foi alguma coisa que na vida me emocionou.
O que mais lhe emocionou na vida?
Sei lá. A vida é tão difícil. O mundo não é alegre não, o mundo é uma merda. A gente tem que lutar por viver, já nasce condenado. Eu não sou... não acho que a vida seja tão fundamental.
Mas a sua vida foi sempre muito fantástica.
É o que vivi, o que pude fazer, tentei fazer.
Para o Brasil, é o Lula que nos permite hoje sorrir um pouco. Hoje a vida é tão difícil, né? O senhor continua fazendo, aos 100 e poucos anos....
Eu gosto de trabalhar, estou um pouco absorvido pela Arquitetura, mas gosto de ficar parado também, ficar pensando nas coisas. Lembrar que o mundo podia ser melhor, os homens podiam ser mais generosos. Um olhar o outro com mais fraternidade. Mas isto tudo o partido (comunista) oferece, e com uma ideia justa. Um dia vai ser realizado.
O senhor é um arquiteto reconhecido mundialmente. Qual das suas obras mundiais lhe trouxeram mais orgulho?
A melhor obra que fiz na Europa é a que foi inaugurada agora, na Espanha. É uma praça enorme, com um grande auditório e um museu (N.R. Trata-se do Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, na cidade de Avilés). Então, contou muito lá na vida dos espanhóis. Tem sido muito visitada, é uma obra muito bem construída Talvez eu pudesse dizer que foi o melhor que já fiz.
Mas os franceses também lhe respeitam muito.
Não tem nada que respeitam, mas eles gostam do meu trabalho.
Lá na França, o que o senhor acha que mais chamou a atenção?
Se eu tivesse que sair do Brasil iria para a França. É um país fabuloso, o povo é amável, inteligente, progressista. Me sinto bem na França, tive o apoio do Partido Comunista de lá, fiz a sede do partido e tive a sorte de encontrar o Andre Malraux, ministro da Cultura de De Gaulle. Fui para a França de navio, quando arrebentou o golpe militar no Brasil de 1964. Então eles invadiram meu apartamento e meu escritório. Quando o Malraux soube o que estava acontecendo, durante minha viagem à França, ele logo conseguiu um decreto do De Gaulle, que me autorizava ficar no país o quanto eu quisesse como arquiteto francês.
Foi o de Gaulle quem lhe deu este decreto....
Dele mesmo, ele propôs ao Malraux. De modo que eu tive mais contato com o ministro, um sujeito inteligente, encantador. Ele me ajudou muito, participava das exposições que eu fizesse. Foi uma figura importante para mim.
De todos os seus projetos, qual o que o senhor considera que teve o resultado mais próximo do que pensou quando projetou?
Talvez um projeto pequenino, da Igreja da Pampulha, do Juscelino. Ele queria fazer uma Igreja, chamou um arquiteto e não gostou, então me convidou. Aí que eu conheci o Juscelino e a Igreja da Pampulha teve um sucesso que mudava completamente a concepção de uma Igreja: era um prédio moderno, chamei pintores e escultores para trabalharem comigo no projeto. Foi uma obra feita no sentido de englobar arquitetura, pintura e escultura. Me deu um pouco mais de prosperidade de prosseguir no trabalho.
O senhor conheceu Lula na época em que ele era o líder operário. Qual sua opinião sobre o ex-presidente?
Ele é amigo do povo, eu o conheci muito tempo atrás. Era a mesma figura, cheia de entusiasmo, querendo fazer as coisas. Uma figura fantástica. Acho que para o Brasil, é o Lula que nos permite hoje sorrir um pouco. Hoje a vida é tão difícil, né?
Entre o Juscelino e o Lula quem o senhor acha que fez mais pelo país?
Não quero comparar.
O senhor foi amigo de ambos, não?
É lógico. Juscelino também era cheio de entusiasmo. Mas a vantagem do Lula tem é que ele veio do nada, era operário. Ele cresceu na luta política, lutando pela vida, até se transformar em um líder político da maior importância, aceito no mundo inteiro. Todo mundo respeita o Lula.
E o senhor acha que a Dilma vai pelo mesmo caminho?
Acho que ela deve ir, né?
Mas é difícil ela seguir a trilha do Lula, não?
Pois é, mas Dilma tem contato bom com Lula. Eu acho que ela vai caminhar bem.
O senhor está gostando do que ela está fazendo?
Estou. Por enquanto não tenho nada a reclamar.
Quando Darcy Ribeiro acompanhou Brizola na campanha para a presidência, em 1989, ele foi ao Rio Grande do Sul e todos falavam do marido da Dilma, Carlos Augusto, líder do PDT. Mas Darcy teria dito 'vocês não sabem nada, ele é bom, mas a mulher dele é melhor ainda'.
Que falta de respeito.(risos)
Não, disse que a mulher era muito mais inteligente...
Ah, sim.
E se referia à Dilma. Darcy nunca comentou nada com o senhor a respeito da Dilma?
Não. Darcy era tão inteligente, tinha uma formação tão humana, que inspirava toda a confiança. Tinha aquele entusiasmo pelo índio, escrevendo, indo para lá no meio deles, dando uma importância enorme, procurando defender. O Darcy foi uma grande figura. Tivemos muito contato, ele era meu amigo. Fiz até uma casa para ele em Maricá. Quer dizer, foi ele quem fez a casa. Quando fui desenhar, já estava desenhada. Em todo caso, ele usou a casa em um período em que estava muito feliz, muito contente com a vida, cheio de sonhos. Seu livro, Brasileiros, foi muito bem feito, correto, na análise das coisas. Um brasileiro ilustre, brasileiro da maior importância foi o Darcy.
O senhor chegou a dirigir a Faculdade de Arquitetura?
Acho que foi na época em que fui retirado de lá pelos militares e quem assumiu meu lugar foi o Sérgio Bernardes (N.R. Niemeyer fez uma pequena confusão, quem o substituiu foi Ítalo Campofiorito).
O Campofiorito conta que a polícia chegou lá na UnB procurando o senhor. O senhor não estava, perguntaram quem o substituía e aí o levaram preso.
(rindo) Nem sabia disto.
Não?
A pressão da direita era permanente, mas não me lembro destes detalhes não. Me lembro que fui chamado na polícia umas duas ou três vezes. Na última, eu vinha da Europa, tinha ficado lá por dois anos e quando voltei pensei que tinham me esquecido. Mas não. Ainda me prenderam e me levara para a Polícia Central.
Para o Dops?
É, mas não posso me queixar, porque só me incomodaram. Não sofri, como outros amigos que foram presos, apanharam, conheceram a tortura. Nada disto ocorreu comigo. Eles tinham prazer em me levar para a polícia e fazer inquérito.
O senhor trabalhou com o Darcy Ribeiro no projeto dos Cieps, do Museu da América Latina e da Universidade Norte Fluminense. Qual destes foi o mais importante para o senhor?
O mais importante para nós era o projeto dos Cieps. Era algo que ia revolucionar o ensino. O Darcy lutou, o Brizola lutou, todo mundo lutou para fazer funcionar. Mas ele nunca foi desenvolvido como poderia ter sido. Era uma maneira simples de conduzir a juventude para o conhecimento.
O senhor acha que não houve continuidade meramente por questões políticas?
Não houve tempo de se consolidar e o governo compreender que era um projeto indispensável. De modo que acabou de repente. Mais importante do que o prédio era ideia. Mas não sei como está funcionando no momento do ponto de vista do ensino.
E a UNB não foi um passo importante no ensino universitário brasileiro?
No começo foi. Eu fiz o projeto, era um projeto parecido com o espírito de arquitetura do que eu fiz em Paris. De modo que era uma coisa que ia funcionar muito bem. Mas não foi bem conduzido.
E depois, quando o Cristovam Buarque assumiu, não voltou ao eixo do que era para ser?
Não. Eu acho que a universidade foi mal construída. Mas está servindo, está atualizando o ensino.
Como foi seu projeto da Universidade da Argélia?
Foi tudo feito com muito coração, muita vontade de fazer bem feito, de ser útil. De modo que a coisa corria bem, com uns tropeços inevitáveis de vez em quando, uma coisa que ocorre, mas quando a direção é firme, a obra se faz bem. Agora eu fiz um projeto na Espanha que é um sucesso, são dois grandes prédios: um teatro, um museu e uma praça fantástica. De modo que quando a coisa tem bom acolhimento e boa orientação, o trabalho satisfaz e a gente fica satisfeito. Senão ficamos lembrando só do que estava no papel.
O Sambódromo surgiu na cabeça de quem primeiro, do senhor ou do Darcy?
Na minha não foi, deve ter sido na dele. Eu fiz o desenho. A gente conversava, ele explicava o que queria. Fiz o estudo, ele modificou o que quis. E a obra está feita, e é útil realmente. Sambódromo é a festa, feito carnaval, a festa do povo.
A ideia das salas de aula nos camarotes no resto do ano começou no início do projeto, ou surgiu no meio do caminho?
Foi ideia do Darcy. Me lembro que quando o prefeito da França esteve aqui, fomos mostrar o Sambódromo para ele. Quando eu disse que embaixo ficavam as salas de aula ele ficou espantado."Que ideia formidável, aproveitar esta correia imensa para levar cultura ao país", ele comentou.
Mas depois parou, também.
Não, agora vai continuar. Com certeza o Lula vai manter as escolas no subsolo. Pelo menos é um gesto corajoso de entusiasmo. Ninguém pensou em fazer o estádio com as aulas embaixo, só mesmo o Darcy poderia ter uma ideia dessas. Nesta nossa pequena conversa, você me deu uma ideia importante. O negócio das salas de aula devia ser mantido embaixo dos estádios.
Quem influenciava mais quem, o Darcy influenciava mais o Brizola ou o Brizola influenciava mais o Darcy?
Acho que o Darcy era mais o intelectual. E Brizola era um homem corajoso, correto e tinha vontade de fazer as coisas. Teria feito muito mais se não tivesse tido tanto problema. Tenho a maior admiração pelo Brizola, era um brasileiro ilustre, corajoso, sabia fazer apolítica.
Uma vez o Pasquim lhe perguntou como era sua relação com as mulheres...
Eu disse, a vida é mulher do lado e o resto seja o que Deus quiser. Eles acharam muita graça e é verdade. Você tem que ter mulher do lado, não é? A vida é difícil, o sujeito luta para fazer a vida ficar melhor e mais generosa. Mas você despede dos amigos. Eu acho a vida uma merda, apesar de seus encantos. Já nascemos condenados.
Condenados ao quê?
A desaparecer.
Fonte: Terra
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