Duplo sentido. Uma freira observa anúncio de duplo sentido da cerveja Devassa em um ponto de ônibus na Rua Jardim Botânico
“O que você está esperando para ter a sua primeira vez?”. O slogan, criado pela agência Mood para a campanha de carnaval da cerveja Devassa, partiu de um anúncio de TV onde um homem de 30 anos tem a sua “primeira experiência” ao lado da atriz Alinne Moraes. O GLOBO apurou que o filme já é objeto de processo no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Já os cartazes, instalados depois, estão em pelo menos metade das bancas de jornais, painéis e mobiliário urbano das ruas internas de Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea, Jardim Botânico, e espalhada por bairros de toda a cidade.
Considerando que a grande maioria dos jovens têm sua primeira experiência sexual na adolescência e que o anúncio chega a todos os públicos indiscriminadamente, e não só aos adultos, até que ponto estimularia consumidores menores de idade a tomar decisões apressadas quanto à sexualidade, com o agravante de associá-las ao consumo de álcool, nos quatro dias de folia?
— Numa época em que está fora de moda falar de prevenção de DST, Aids e gravidez na adolescência, botar bebida e perda da virgindade na mesma cuíca num chamariz é, claramente, uma forma abusiva de propaganda. Uma medida urgente do Ministério Público seria perfeitamente cabível. Se chegasse a mim, eu imediatamente a acolheria — opina a juíza Cristiana Cordeiro, durante anos atuando no CNJ na área de infância e juventude e uma ativista do Estatuto do Adolescente.
Empresa vê ‘convite irreverente’
A cervejaria se defende: respondendo tanto pela empresa japonesa que explora a marca — a Kinin Holdings — quanto pela agência, o porta-voz e assessor de imprensa Paulo Figueiredo, ao saber da reportagem, enviou uma nota argumentando que a única intenção do mote foi aliar a já conhecida irreverência das campanhas da Devassa ao estímulo para que as pessoas experimentem e apreciem o produto.
“Como parte de uma mesma campanha, foram desenvolvidas diferentes peças. Entre elas: filme para TV, que relata a experiência do personagem fictício Deco Silva, com mais de 30 anos que decide experimentar pela primeira vez a cerveja Devassa. O mobiliário urbano, que complementa a mesma campanha, apresenta, conforme a legislação, apenas o produto, sem qualquer outro elemento visual, reforçando que o convite com a expressão ‘primeira vez’ refere-se à experimentação da marca. Todas as peças da campanha obedecem rigorosamente à legislação atribuída à categoria de cerveja, trazendo em destaque a frase de advertência: ‘Beba com respeito e moderação’, diz a nota da cervejaria.
Questionado se houve ou não alguma preocupação ou discussão ética quanto à ambiguidade da mensagem, e sua propagação para todos os públicos durante os quatro dias de festas, o porta-voz tentou obter respostas junto à diretoria, que decidiu, após algumas horas, que a nota era suficiente para traduzir a posição da marca.
Mesmo admitindo que o anúncio de TV, apesar de ser menos direto e estando sujeito ao controle dos pais, já recebeu inúmeras queixas e está sofrendo processo, o Conar é cauteloso ao comentar a campanha de rua. Vice-presidente executivo do órgão regulador, Edney Narchi assume posição de não comentar, por não existir ainda um outro processo específico para essa mídia.
— Precisamos primeiro tomar conhecimento, para, só assim, estudar providências. Quanto ao mérito, não posso, não devo e não vou opinar.
Independentemente de qualquer ação judicial ou medida do MP, para que o Conar instaure um processo não é necessário que haja queixas, como explica o publicitário Armando Strozenberg, vice-presidente nacional da ABAP (Associação Brasileira das Agências de Publicidade):
— O próprio Conar também pode a qualquer tempo instaurar um processo “de ofício”, se entender que é oportuno. De resto, basta um consumidor considerar que a peça infringe o código de autorregulamentação publicitária para formalizar uma reclamação junto ao órgão.
Antropólogo especializado em consumo e professor da PUC-Rio, Everardo Rocha vê algum exagero, embora pregue a necessidade de vigilância.
— A sociedade anda muito zangada, sem humor, e as agências têm que prestar atenção a isso. No escopo da campanha de TV, que é engraçada, o mote não chega a ser brilhante, mas tampouco é tão nocivo. Tenta renovar a clássica campanha do primeiro sutiã, dentro da necessidade da propaganda de criar ritos de iniciação ou ideias definitivas e acaba fazendo uma associação infeliz entre o álcool e a iniciação sexual.
Outra magistrada, atuando na capital, autora do livro “A vida não é justa” — com relatos a partir de15 anos como juíza de uma Vara de Família —, Andréa Pachá vê irresponsabilidade e faz uma advertência de caráter sociológico:
— Hoje tudo que diz respeito a limite e controle é associado a conservadorismo e falta de democracia. Um equívoco. Não é o descontrole que traduz o nível de liberdade, mas o contrário: os limites ensinam e permitem que a sociedade cresça e saiba exercê-la.
Fonte: O Globo
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