Essa é uma das obras-primas da religião: podemos passar anos na “casa de Deus” (o templo confundido com “a Igreja”), servindo, trazendo dízimos, ofertando sacrifícios e, ainda assim, nunca ter tido fome e sede de Deus, como diz o Salmista: “Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te busco intensamente; a minha alma tem sede de ti! Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água” (Sl 63.1). Tenho a impressão de que talvez a religião produza mais ateístas, na prática, que o próprio ateísmo.
Nesta forma de religião não há compromisso real com a vida, nem no sentido de vivência do que se prega, nem no sentido de amor à vida. Isto, pois o viver (a vida) está associado com o buscar a Deus: “Busquem-me e vivam”, afirma ele, separando isto da religião por eles praticada: “Não façam a tolice de perder seu tempo viajando para Gilgal nem se empenhem em descer até Berseba. Gilgal está aqui hoje, mas amanhã não existirá. E Betel é só teatro, não tem substância” (5.4-5 – TAM).
O amor ao princípio, muitas vezes, nos faz perder de vista a vivência do próprio princípio. A verdade que interessa é somente a verdade agradável, e não a verdade “nua e crua”, como diz Amós (5.10-12).
Há um tempo assisti ao filme O Livro de Eli. Achei interessante a sua crítica, sobretudo aquela dirigida a alguns fundamentalismos religiosos de nosso tempo. Uma das frases marcantes do filme é quando Eli, personagem do protagonista Denzel Washington, afirma: “Todos esses anos que eu o levava e o lia, diariamente, na minha obsessão por mantê-lo a salvo, deixei de viver segundo o que aprendi nele”.
É impressionante como essa frase representa bem o que se tem vivido em termos de história das religiões, dentre elas o cristianismo, até os dias de hoje. Ou seja, quando nos tornamos paladinos cegos de um livro sagrado (no caso do filme, a Bíblia), incorporamos a posição dos fundamentalistas radicais e tendemos a perder de vista a integridade que o próprio livro nos ensina – no caso de Eli, o ensino fundamental esquecido foi: considerar o próximo antes e acima de si mesmo. Isso no conduz ao ponto de partida (não da religião), mas da relação com Deus (que Israel havia perdido de vista): considerar antes e em primeiro lugar o outro (próximo), e só assim estarei mais perto do Outro (Deus).
Fonte: Jonathan Menezes em Escrever é Transgredir
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