Citação bíblica, documentário do Discovery Channel, trechos do filme “Carandiru”, de Hector Babenco, e da música “Haiti”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, foram usados como recursos tanto pela defesa como pela acusação nos seis dias de julgamento do primeiro grupo de acusados de participar do Massacre do Carandiru.
No plenário, os embates foram intensos. A defesa insistiu na individualização da conduta dos réus, mas a acusação saiu vitoriosa depois de os jurados considerarem que a ação de toda a tropa — no caso a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) — contribuiu para 13 das 15 mortes do segundo pavimento do pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, no dia 2 de outubro de 1992.
No julgamento, as partes utilizaram todos os recursos possíveis para desqualificar o outro lado. A advogada Ieda Ribeiro de Souza citou a Bíblia — Timóteo 4:7. “Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé”, disse ela, em resposta ao promotor Márcio Friggi, que a acusou de soberba por ter dito que ele entrou no caso na véspera do julgamento. Ieda está no processo desde 1997.
Mais à frente, a advogada usou outros recursos inusitados. Mostrou o documentário “São Paulo sob ataque”, produzido pelo Discovery Channel, sobre a onda de crimes contra policiais e civis em maio de 2006. E citou um livro sobre os ataques da facção criminosa que age dentro e fora dos presídios paulistas. Com isso, acusava o governo de omissão em relação a sua polícia tanto nos episódios do Carandiru como nos de 2006.
Friggi, por sua vez, citou o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para defender a condenação dos PMs em bloco. Disse que, em Brasília, os ministros que votaram a favor de uma individualização mais específica da conduta foram vencidos. E citou a canção “Haiti”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. “E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo/Diante da chacina/111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos/Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres/E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.
Os promotores exibiram ainda um trecho de dez minutos de “Carandiru”, de Héctor Babenco, e mostraram aos envolvidos e à plateia (composta por jornalistas, estudantes de Direito, policiais aposentados, políticos, advogados e juristas) reportagens de TV sobre o episódio. O grupo, que não lotou o espaço que lhe foi reservado em nenhum dos seis dias de julgamento, também viu matérias sobre violência e abuso de autoridade envolvendo policiais militares de São Paulo e de outros estados do país.
Entre as testemunhas, destacou-se o ex-governador Luiz Antônio Fleury Filho que, exaltado, assumiu politicamente a responsabilidade pelo episódio. Além disso, ele negou que a demora em divulgar o número de vítimas tivesse qualquer relação com a tentativa de eleger como prefeito de São Paulo o então vice-governador Aloysio Nunes Ferreira (hoje senador pelo PSDB-SP).
Durante o julgamento, Ieda seguiu a mesma linha. Lutou pela individualização de conduta dos réus.
— Resta à Promotoria a acusação genérica, a comoção social e os livros escritos única e exclusivamente na opinião dos detentos. Falta ao MP a individualização da conduta — disse.
Ao finalizar sua exposição, Ieda afirmou que o “processo foi feito às pressas, de forma ridícula para dar satisfação a organismos internacionais”. Por outro lado, o promotor Fernando Pereira da Silva encerrou sua participação, falando sobre a repercussão do caso:
— A gente tem que acreditar em mudar esse país. A decisão que sair daqui à noite vai repercutir no mundo todo.
Com seis dias de duração, o julgamento do primeiro dos pelo menos quatro grupos de acusados de participar do Massacre do Carandiru teve ainda outras peculiaridades. A começar pela suspensão dos trabalhos, por um dia e meio, depois que um jurado, vítima de uma virose, teve diarreia. Por conta disso e de pausas para almoço e ajustes no projetor de imagens, o julgamento parou várias vezes.
Para chegar a uma decisão, cada jurado respondeu a 1.560 perguntas do tipo sim ou não. Quatro por réu (eram 26), e para cada uma das 15 vítimas. Ao final da fase de debates entre acusação e defesa, os jurados receberam os cumprimentos tanto da advogada Ieda como dos promotores de Justiça. Depois, na leitura da sentença, foi a vez de o juiz José Augusto Nardy Marzagão se dizer “eternamente agradecido” ao conselho de sentença.
Fonte: O Globo
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