sábado, 9 de fevereiro de 2013

Anúncio associando perda de virgindade e álcool vai ao Conar

Duplo sentido. Uma freira observa anúncio de duplo sentido da cerveja Devassa em um ponto de ônibus na Rua Jardim Botânico

 “O que você está esperando para ter a sua primeira vez?”. O slogan, criado pela agência Mood para a campanha de carnaval da cerveja Devassa, partiu de um anúncio de TV onde um homem de 30 anos tem a sua “primeira experiência” ao lado da atriz Alinne Moraes. O GLOBO apurou que o filme já é objeto de processo no Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária). Já os cartazes, instalados depois, estão em pelo menos metade das bancas de jornais, painéis e mobiliário urbano das ruas internas de Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea, Jardim Botânico, e espalhada por bairros de toda a cidade.

Considerando que a grande maioria dos jovens têm sua primeira experiência sexual na adolescência e que o anúncio chega a todos os públicos indiscriminadamente, e não só aos adultos, até que ponto estimularia consumidores menores de idade a tomar decisões apressadas quanto à sexualidade, com o agravante de associá-las ao consumo de álcool, nos quatro dias de folia?

— Numa época em que está fora de moda falar de prevenção de DST, Aids e gravidez na adolescência, botar bebida e perda da virgindade na mesma cuíca num chamariz é, claramente, uma forma abusiva de propaganda. Uma medida urgente do Ministério Público seria perfeitamente cabível. Se chegasse a mim, eu imediatamente a acolheria — opina a juíza Cristiana Cordeiro, durante anos atuando no CNJ na área de infância e juventude e uma ativista do Estatuto do Adolescente.

Empresa vê ‘convite irreverente’

A cervejaria se defende: respondendo tanto pela empresa japonesa que explora a marca — a Kinin Holdings — quanto pela agência, o porta-voz e assessor de imprensa Paulo Figueiredo, ao saber da reportagem, enviou uma nota argumentando que a única intenção do mote foi aliar a já conhecida irreverência das campanhas da Devassa ao estímulo para que as pessoas experimentem e apreciem o produto.

“Como parte de uma mesma campanha, foram desenvolvidas diferentes peças. Entre elas: filme para TV, que relata a experiência do personagem fictício Deco Silva, com mais de 30 anos que decide experimentar pela primeira vez a cerveja Devassa. O mobiliário urbano, que complementa a mesma campanha, apresenta, conforme a legislação, apenas o produto, sem qualquer outro elemento visual, reforçando que o convite com a expressão ‘primeira vez’ refere-se à experimentação da marca. Todas as peças da campanha obedecem rigorosamente à legislação atribuída à categoria de cerveja, trazendo em destaque a frase de advertência: ‘Beba com respeito e moderação’, diz a nota da cervejaria.

Questionado se houve ou não alguma preocupação ou discussão ética quanto à ambiguidade da mensagem, e sua propagação para todos os públicos durante os quatro dias de festas, o porta-voz tentou obter respostas junto à diretoria, que decidiu, após algumas horas, que a nota era suficiente para traduzir a posição da marca.

Mesmo admitindo que o anúncio de TV, apesar de ser menos direto e estando sujeito ao controle dos pais, já recebeu inúmeras queixas e está sofrendo processo, o Conar é cauteloso ao comentar a campanha de rua. Vice-presidente executivo do órgão regulador, Edney Narchi assume posição de não comentar, por não existir ainda um outro processo específico para essa mídia.

— Precisamos primeiro tomar conhecimento, para, só assim, estudar providências. Quanto ao mérito, não posso, não devo e não vou opinar.

Independentemente de qualquer ação judicial ou medida do MP, para que o Conar instaure um processo não é necessário que haja queixas, como explica o publicitário Armando Strozenberg, vice-presidente nacional da ABAP (Associação Brasileira das Agências de Publicidade):

— O próprio Conar também pode a qualquer tempo instaurar um processo “de ofício”, se entender que é oportuno. De resto, basta um consumidor considerar que a peça infringe o código de autorregulamentação publicitária para formalizar uma reclamação junto ao órgão.

Antropólogo especializado em consumo e professor da PUC-Rio, Everardo Rocha vê algum exagero, embora pregue a necessidade de vigilância.

— A sociedade anda muito zangada, sem humor, e as agências têm que prestar atenção a isso. No escopo da campanha de TV, que é engraçada, o mote não chega a ser brilhante, mas tampouco é tão nocivo. Tenta renovar a clássica campanha do primeiro sutiã, dentro da necessidade da propaganda de criar ritos de iniciação ou ideias definitivas e acaba fazendo uma associação infeliz entre o álcool e a iniciação sexual.

Outra magistrada, atuando na capital, autora do livro “A vida não é justa” — com relatos a partir de15 anos como juíza de uma Vara de Família —, Andréa Pachá vê irresponsabilidade e faz uma advertência de caráter sociológico:

— Hoje tudo que diz respeito a limite e controle é associado a conservadorismo e falta de democracia. Um equívoco. Não é o descontrole que traduz o nível de liberdade, mas o contrário: os limites ensinam e permitem que a sociedade cresça e saiba exercê-la.



Fonte: O Globo
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