segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Os ex-afeminados também herdarão o Reino de Deus

“Gloria a Deus, que hoje posso dizer ao mundo que esse Deus é grande! Era um travesti, não prestava pra nada.” Sexta, 19h30, hora de mais um culto de libertação na Assembleia de Deus Pentecostal da Fé. A conhecida trajetória de Clóvis Bernardo permeia o templo localizado na pobre Vila São Domingo, no Altiplano Cabo Branco. Ela está em cada fiel ajoelhado no chão, curvado sobre as cadeiras brancas de plástico. Está no rosto de vários dos rapazes da banda, alguns deles orgulhosos da condição de ex-homossexuais. Está na face ansiosa de uma mulher que trouxe o marido e o filho da Bélgica para pedir a bênção do pastor. Ela, brasileira, ora fervorosamente, enquanto ele segura um bebê e olha espantado.



O templo foi construído para esses ansiosos, para os sem esperança, para aqueles que, como o pastor, querem deixar para trás uma existência, acreditam, calcada no pecado. Temem, antes de tudo, a solidão da exclusão. “Eu só queria ser feliz, ter alguém quando eu voltasse para casa”, diz Clóvis pouco antes de iniciar o culto. Um dos músicos da igreja gostava de se vestir de mulher, mas não saía de casa. Travestia-se para si mesmo. Mas sofria ao se deitar com outros homens. Passou a seguir o pastor, que lhe ensinou: “A felicidade do travesti é o laquê, a peruca, a maquiagem, o salto alto. Mas, quando ele tira e olha no espelho, vêm o sofrimento e a angústia. A felicidade é só se arrumar.” Clóvis generaliza seus sentimentos em relação ao seu passado e termina sendo acompanhado em seu culto de duas horas. “Olha pro teu irmão e diga ‘não erre!’. Deus condena na Bíblia idólatras, afeminados, sodomitas, ladrões, bêbados...”

Os fiéis, que lotam cerca de 70% da igreja, localizada em frente ao Bar da Nalva, obedecem. Estão, alguns sem saber, reproduzindo um trecho de Coríntios 6,9-10. “O que é que Deus condena?”, insiste o pastor. “Os afeminados”, respondem vários ex-afeminados. Têm hoje uma certeza: herdarão o Reino de Deus.

Durante a celebração, Clóvis Bernardo, que se senta pouco na cadeira de espaldar alto no centro do palco, dança bastante. Uma música em especial provoca a reação dos fiéis: fala do “Rei dos Reis”, é feita com dois atabaques, um xique-xique, dois pandeiros e um tambor, além da bateria tocada por Nycollas. Localizados atrás do pastor, os músicos lembram ogãs, que acompanham as cerimônias do candomblé com seus instrumentos. Algumas fiéis, como Roberta Kelly, 31 anos, dançam quase em transe, o corpo sacolejando para frente e para trás. “Quando eu vejo uma alma que tá precisando de Jesus, eu me apaixono. Pode ser um travesti, pode ser uma prostituta, eu me apaixono.” O cineasta e professor da Universidade Federal da Paraíba Bertrand Lira, que documentou a vida de Clóvis Bernardo no filme O rebeliado, está voltando ao Altiplano depois de um ano. Fica impressionado com o tamanho do templo e o curto prazo no qual ele foi erguido. “Quando eu fiz o filme, a igreja era uma casinha pequena”, conta. Clóvis, Socorro e as crianças viviam numa espécie de ruela até sete meses atrás, ali perto da nova igreja, antes de irem para o pequeno Éden no bairro de Manaíra, perto do mar. Os meninos, com certeza, herdarão não só o Reino de Deus, mas um lugar melhor para viver.

DEIXANDO DEUS TRABALHAR

Da casinha alugada de Josinaldo Tibúrcio, 45, dá para ver bem o prédio alto onde vive o pastor evangélico que um dia atendeu por Anastácia. O irmão Naldo, como é mais conhecido, mora à beira do Rio Jaguaribe, no popular bairro de São José. É um dos milagres operados por Clóvis Bernardo. Homossexual desde a adolescência, ele passou a vida tentando livrar-se do que considera um mal do demônio. Casou na Igreja Batista, teve dois filhos. Viajou para o Rio, onde, conta, “não ficou firme” na decisão de agir como heterossexual. Há 15 anos em João Pessoa, onde já trabalhou como porteiro e zelador, ele diz ter renovado a aliança com Cristo graças a Clóvis. Diz que vai voltar para a mulher, Lia, que ficou em Tracunhaém (PE), terra natal do homem magro, os olhos fundos e a expressão entristecida. “Estou esperando Deus trabalhar para eu voltar pra ela. A gente tem que esperar o agir de Deus, não é?” Enquanto aguarda a ação superior, ele decora chinelos com “pedrarias” de plástico e os vende por R$ 20 o par. Os porquinhos de barro custam R$ 5. Lá fora, o movimento de policiais com metralhadoras na mão não assustam. “De vez em quando é assim, isso aí é porque um rapaz daqui matou uma promotora.” Nada parece abalar os olhos tristes de Naldo, que está feliz por ter trocado a camiseta e o short jeans por uma camisa de botão e calças compridas. A resignação, ao que parece, trouxe-lhe um conforto imaterial, não representado pela casa à beira do rio. “Deus queria que eu começasse por baixo, que é para Deus me dar vitória.” Dentro da casinha que também serve como ateliê, o divino aparece novamente, agora numa inscrição feita na parede meio suja: “Agindo Deus, quem impedirá?” “Pintei assim que entrei na igreja, porque aí não sai da minha mente.” Apesar de ter mudado radicalmente seus dias, suas roupas, seus amores, ele não sabe em que passagens a Bíblia, materialização da Verdade Maior, se opõe contra o amor entre aqueles do mesmo sexo. Também não se preocupa com coisas pequenas logo agora que finalmente poderá ter a sua própria casa: conta que o governo vai desapropriar aquela área do rio e dar aos que moram ali um novo lar. Se encosta no muro e olha os prédios a poucos quilômetros de sua casa pluvial. “Olha, ali perto do prédio do pastor, naquele branco e azul, mora outra irmã, Lourdes... é uma bênção, uma bênção, louvado seja Deus”.



Fonte: JC Online
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