quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Os assexuados: conheça a tribo que defende o direito de não transar


Michael Doré tem 28 anos e nunca beijou. Nem pretende. Beijos, carinhos e qualquer forma de contato íntimo lhe causam repulsa. “O sexo me enoja”, diz. “Sou um assexual convicto.” É quase impossível imaginar que um cara como ele, charmoso, bem-sucedido — é um matemático norueguês e PhD da Universidade de Birmingham, na Inglaterra —, sequer pense em transar. Ainda mais nos dias de hoje, em que sexo e orgasmo são quase uma obrigação. E, antes que você se pergunte o que há de errado com Michael, ele mesmo responde: “Não, não sou gay, não fui abusado na infância, nem tenho problemas hormonais. Eu simplesmente não gosto de transar”. Assim como ele, a pedagoga mineira Rosângela Pereira dos Santos, o bancário americano Keith Walker e uma legião de assexuados dos mais diferentes cantos do planeta começam a sair do armário. São homens e mulheres de todas as idades, perfeitamente capazes de fazer sexo, mas sem nenhum apreço pela coisa. Gente que, graças ao apoio da Aven (Asexual Visibility and Education Network), rede que luta pela visibilidade dos assexuados no mundo, conseguiu se unir para levantar a bandeira da abstinência e lutar para que a assexualidade seja reconhecida como uma quarta orientação sexual (além de héteros, homos e bissexuais).

Sob o slogan “It’s o.k. to be A” (algo como “tudo bem ser assexuado”), essa turma tem frequentado as passeatas gays de Nova York, São Francisco, Londres e Manchester. No grupo, lutando contra o preconceito em relação aos que não gostam de transar, há desde aqueles que nunca tiveram uma relação sexual na vida, até os que fazem sexo por obrigação, para não perder o parceiro. “Por assexual entende-se apenas aquele que não sente atração sexual, não o que não é capaz de se envolver”, explica a socióloga Elisabete Oliveira, que fez do assunto tema de seu doutorado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. “Existem os assexuais românticos e os não românticos. O primeiro grupo consegue se apaixonar, casar e até ter filhos — desde que não haja sexo envolvido. O segundo não gosta de carinhos e não se sente apto a se apaixonar.”

Esses dois grupos também podem ser classificados como libidinosos ou não. “Ser assexual não significa, necessariamente, não ficar excitado”, afirma o bancário americano Keith Walker, 37 anos. “Muitos de nós se masturbam, mas não estabelecem relação entre isso e o sexo. É apenas uma maneira de relaxar e aliviar o stress”, diz. Segundo a psicóloga paulista Tânia Mauadie Santana, hoje é comum que a energia que antes era sexual seja canalizada para outras áreas da vida. “A libido é uma energia vital, o que não necessariamente se manifesta só nos órgãos sexuais. O desejo pode ser direcionado para o trabalho, a comida e as atividades físicas”, diz.

Com as recentes investidas no chamado Viagra feminino — comprimido à base de flibanserina que promete devolver a libido à mulher que a perdeu e apresentá-la a que nunca teve —, a comunidade médica tem falado muito em “desejo sexual hipoativo”. O termo, catalogado há mais de 30 anos pela Organização Mundial da Saúde como uma “disfunção sexual”, tem conotação pejorativa para assexuados, que, com razão, não querem ser vistos como doentes. “Quem pratica sexo costuma ter humor melhor, pois o ato libera hormônios de ação antidepressiva. Mas a falta dele não chega a ser um problema de saúde. Ninguém vai morrer por isso”, afirma Tânia Santana. Segundo o psiquiatra Alexandre Saadeh, a assexualidade só requer tratamento quando gera sofrimento. “Se a falta de desejo ou o excesso dele impedir alguém de ser feliz, aí, sim, deve-se falar em tratamento. Caso contrário, não há por quê”, afirma o médico.

Para mostrar (e entender) que é possível ser feliz sem sexo, Marie Claire se cadastrou em redes e sites de relacionamento onde assexuais trocam ideias, causas e bandeiras. No Brasil, o site Refúgio Assexual, criado pelo pernambucano Julio Neto, de 19 anos, é o principal local de convergência dessa turma. “Muitos chegam aos fóruns com sentimento de culpa. É compreensível. Na sociedade em que vivemos hoje, em que se usa o sexo para vender de geladeiras a refrigerantes, é quase um crime não querer transar”, diz ele. Nas próximas páginas, você confere dilemas, embates, questionamentos e conquistas vividos por assexuais do mundo todo.

“Cheguei a pensar que fosse gay” – Michael John Doré (foto), 28, matemático

“Até os 11 anos de idade, eu e meus amigos éramos todos parecidos, brincávamos das mesmas coisas e tínhamos ‘nojo’ de beijo de língua e sexo. Aos 12 anos, esses mesmos garotos passaram a ficar fascinados por mulheres. Falavam sobre elas o tempo todo, idealizavam como seria transar e folheavam revistas de sacanagem. Eu não conseguia entender o que, de uma hora para outra, havia mudado tanto entre eles. Na minha cabeça, havia a possibilidade (e a esperança) de que, cedo ou tarde, eu também fosse me sentir como eles. Cheguei a pensar que era gay. Mas, se as mulheres não me atraiam sexualmente, os homens, muito menos. Então, aos 16 anos, quando todos meus amigos e amigas só falavam e pensavam em sexo, passei a me considerar assexual. E, temendo o estranhamento das pessoas, guardei comigo esse segredo.

Ainda assim, vivi vários episódios de bullying na escola. Estranhando minha falta de interesse nas garotas, meus colegas de classe me excluíam da turma, pegavam no meu pé e diziam que eu era gay — o que, para mim, era ainda mais dolorido. Dez anos se passaram entre a minha ‘autodescoberta’ e a minha capacidade de revelar isso aos amigos mais próximos. Foi um período muito complicado, pois eu não só tinha de lidar com minha assexualidade, algo que nem entendia direito, como me apontavam como algo que eu não sou. Com o tempo, entendi que pessoas ignorantes não conseguem diferenciar homossexualidade de assexualidade.

Em julho deste ano, decidido a participar da parada GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros) de Londres, com um grupo de assexuais que luta pelo direito de não transar, abri a verdade para minha família. Eles me deram muito apoio e ficaram felizes por mim. Minha irmã, inclusive, decidiu ir comigo a uma parada GLBT em Manchester, um mês depois. Acho que a pergunta que eu mais ouço quando conto que sou assexual é: ‘Por que você tem a necessidade de se definir dessa forma?’. Pelo simples motivo de que gosto de entender quem eu sou. A maioria das pessoas — assexuais ou não — também pensa assim. Muitos encontram alívio quando descobrem que não estão sozinhos, que não são únicos. Além disso, me assumir como assexual e participar ativamente da comunidade é um bom jeito de conhecer parceiras assexuais. Eu sou um assexual romântico — teria um relacionamento com uma mulher. Mas ela deve ser, necessariamente, assexual também. O sexo para mim é repulsivo e eu só me relacionaria com uma pessoa que não me cobrasse qualquer tipo de contato íntimo. Nunca na minha vida fiquei ou transei com uma garota. Em nenhum momento da minha vida, até aqui, tive vontade. Nem a menor curiosidade.”

“Odiei o sexo desde a 1ª vez” – Rosângela Pereira dos Santos (foto), 32 anos, pedagoga

“Tenho 32 anos, estou solteira e sou formada em pedagogia, mas trabalho em um projeto ambiental do estado de Minas Gerais. Fui filha única até os 23 anos de idade, quando nasceu meu irmão do segundo casamento da minha mãe. Coincidência ou não, foi nesse mesmo ano que perdi minha virgindade. Fui uma adolescente tardia. Até os 14, brincava com Barbies — hoje, algo impensável para a nova geração. Mas não foi por isso que demorei para transar. Sempre desconfiei que havia algo diferente comigo. Não sentia o prazer que minhas amigas diziam sentir quando saíam com rapazes. Achava que tinha algum tipo de problema e, por ser muito jovem, não conseguia conversar sobre isso com ninguém. Sofria sozinha. E, como imaginei que aconteceria, odiei o sexo desde a primeira vez. Foi com um namorado da época. Eu gostava dele, adorava beijá-lo, fazer e receber carinho… Teoricamente, todos os ingredientes necessários para dar certo. Mas, sem sexo, não deu. Por mim, passaria o resto da vida sem transar e seria feliz! Mas gosto de namorar e, infelizmente, é quase impossível encontrar — pelo menos aqui no Brasil — alguém igual a mim. Até por isso não consigo entrar em um relacionamento sério há cinco anos. Isso significaria enfrentar uma pressão enorme para transar e, fatalmente, me deixaria infeliz. Sei que meu problema não é físico. Já fui a médicos, fiz várias contagens hormonais e não há absolutamente nada errado comigo.

Eventualmente, eu até transo. A última vez aconteceu há três meses. O rapaz não é meu namorado, mas gosto bastante dele. É uma ótima companhia. Gosto dos homens e sei que posso perfeitamente me apaixonar. Curto sair para jantar, ir ao cinema, tomar cerveja, fazer carinho, beijar bastante… mas não suporto qualquer tipo de contato sexual. Tudo que envolve a genitália me incomoda e é extremamente desagradável: sexo oral, penetração… tanto que nunca tive um orgasmo enquanto transava. Por outro lado, a masturbação não é um problema para mim. Sou perfeitamente capaz de atingir o orgasmo me estimulando sozinha. É uma ótima forma de aliviar o stress do dia a dia, sem nenhuma conotação sexual.

Nas poucas vezes em que tentei falar sobre o assunto com pessoas próximas, sei que me rotulavam como o estereótipo de garota esquisita, complexada, isolada, coisa que eu não sou! Não foram momentos fáceis. Hoje em dia, só amigas mais íntimas sabem de minha ‘situação’. Faz pouco tempo, cerca de um ano, que finalmente me descobri como assexual. Foi através de pesquisas na internet: procurando entender melhor meu comportamento ‘diferente’, encontrei, em fóruns de discussão, pessoas como eu. Percebi que não estava sozinha! Apesar de ser um alívio pessoal, sei que não posso falar sobre esse assunto com qualquer pessoa. Minha família, por exemplo, não faz ideia do que seja a assexualidade — e tenho certeza que a maior parte dos brasileiros também não. Até cinco anos atrás, por exemplo, ao digitar a palavra “assexual” no Google, só apareciam artigos sobre amebas e bactérias.”

No Brasil, 9% das mulheres não acham o sexo importante para o casamento

“Fico excitado. só não sinto o mínimo tesão” - Keith Walker, 37, bancário

“Descobri que sou assexual há seis anos. Meu primeiro casamento tinha acabado de terminar. Ficamos quatro anos juntos, mas, nesse tempo todo, só transamos umas cinco vezes. Depois de casarmos, no entanto, minha ex-mulher não conseguiu mais lidar com minha falta de interesse em sexo. E, para falar a verdade, eu também não. Me sentia como um peixe fora d’água, não só pela cobrança de minha mulher, mas porque todos os meus amigos e familiares tinham uma vida sexualmente ativa e, como a maioria das pessoas, viviam falando disso. Não sou impotente. Pelo contrário, ficar excitado é algo perfeitamente normal para mim, basta concentração. O que não tenho é tesão. A ejaculação, para muitos assexuais, é uma simples forma de alívio físico. E é justamente o que acontece comigo. Eu era apaixonado pela minha ex-mulher, mas não sentia desejo por ela (como não sinto, aliás, por ninguém). Não conseguimos entrar em um acordo saudável para ambos, e o relacionamento terminou. A partir daí, resolvi procurar apoio na internet, buscando pessoas como eu e, assim, fazer parte de um grupo, finalmente.

Mas não foi o que aconteceu. Pelo menos não no princípio. Como eu nunca tinha ouvido falar em assexualidade — nem a palavra era familiar —, acabei entrando para um grupo de celibatários. Nunca achei que pudesse ser gay, pois sempre me apaixonei romanticamente por mulheres, só não tinha vontade de fazer sexo com elas. Não demorou para que eu descobrisse que os celibatários eram pessoas completamente diferentes de mim: tinham desejo sexual, mas o reprimiam por motivos religiosos. Eu não, eu simplesmente não tinha vontade de fazer sexo. Não sentia tesão. Ou seja, nem lá eu me encaixava. Mas foi graças a um dos rapazes que eu conheci no grupo que descobri minha tribo. Percebendo minha total falta de libido, ele me falou sobre os assexuais, o trabalho da rede Aven e sugeriu que eu procurasse o grupo.

Moro em Washington e trabalho em um banco. Até antes de encontrar a Aven, quase não conversava com meus colegas sobre minha condição ‘diferente’ da maioria. Não é fácil lidar com um assunto que nem eu próprio tinha conhecimento. As poucas pessoas com as quais falava disso até tentavam me ajudar. Mas, no fundo, só atrapalhavam. Entendiam o que eu sentia, e cedo ou tarde, tentavam me ‘converter’ — como se essa fosse uma escolha minha. E não é. A única certeza que sempre tive é que sou heterossexual. Sei que muitos assexuais heterossexuais são questionados sobre sua orientação. Há um senso comum de que quem não gosta de sexo só pode ser gay — e reprimido. Mas isso é puro preconceito. Sou perfeitamente capaz de me apaixonar. E só me apaixonei por mulheres até hoje. Já fiz sexo muitas vezes, em especial quando estava na faculdade. Fazer sexo é algo que se espera de um homem jovem, estudante, que mora sozinho. E foi o que acabei fazendo durante os relacionamentos que tive na época. Transei não por desejo, mas por me sentir na obrigação de cumprir um ‘ritual’ presente em todos os namoros.

Foi só quando conheci a Aven — e, através dela, tive contato com pessoas parecidas comigo — que descobri que não precisava mais me sujeitar a isso. Há mais gente no mundo que, assim como eu, detesta sexo. Essas pessoas me entendem e aceitam. Tanto que foi através das reuniões e debates promovidos pela Aven que conheci minha atual mulher, uma moça linda e doce, sem a qual hoje não me imagino. Assim como eu, ela é assexual sem libido. Nos gostamos muito e, eventualmente, trocamos beijos e carícias, sem qualquer apelo erótico. É um amor tão lindo e tão puro que a cerimônia de nosso casamento, há três anos, foi transmitida em tempo real pelo da Aven — decisão que tomamos juntos para trazer mais visibilidade para nossa causa.

Somos muito felizes e até falamos em filhos. Se decidirmos ter filhos naturais (e não adotivos), não vejo por que não fazer sexo para engravidar. Nesse caso, não estaríamos nos divertindo — estaríamos apenas procriando. Não sou incapaz de fazer sexo. Pelo contrário, é uma opção não praticá-lo. E isso é muito libertador.”


Fonte: Marie Claire
-----------------------------