segunda-feira, 8 de março de 2010

Violência Contra as Mulheres no meio evangélico


Somos evangélicos, mas ele me espanca...
“Não entendia porque isso estava acontecendo. Não tinha vontade de fazer mais nada”.
O soco no queixo que derrubou Tereza, 33 anos, sobre os armários da sala, também jogou-a nas estatísticas que contabilizam uma mulher agredida no Brasil a cada quinze segundos. Tereza não sabe disso, nem se importou em contar quanto tempo durou a primeira surra. A única coisa que lhe vinha á cabeça era um arrependimento uma frustração. Casada com Pedro e natural do Rio de Janeiro, ela havia se mudado para São Paulo acompanhado do marido, que buscava uma oportunidade de emprego na área de enfermagem. Evangélicos, freqüentadores de uma grande igreja pentecostal na zona leste da capital, ela achava que tudo iria se ajeitar. Foi quando viu seu marido conversando com uma desconhecida, que se sentava bem á vontade no capô do carro do casal. "Fui perguntar quem era e, como resposta recebi um soco", relembra. Além da agressão, ela foi trancada em casa e proibida de sair.Era o início de um ciclo de violência de todos os tipos: físicas, psíquicas, morais e sexuais. Tereza teve forte depressão. “Não entendia porque isso estava acontecendo. Não tinha vontade de fazer mais nada”.Já na igreja, tudo parecia ir muito bem. Atuante, Pedro é um dizimista fiel, serve a santa ceia, lidera o grupo de missões, participa dos encontros de coordenadores e é bem visto pela liderança. Mas em casa se transforma: humilha e agride a esposa. "Ele me obriga a praticar sexo oral e anal". Sei que isso não agrada a Deus. Não sei o que fazer. Se não faço, ele me ameaça", conta em meio às lágrimas.Tanto o nome dela quanto o dele, assim como das demais vítimas que contam suas histórias nessa reportagem são fictícios. Uma exigência da justiça. Porém, suas histórias são dolorosamente verídicas. Afinal, longe de ser exceção, casos como de Tereza são comuns no Brasil. Os dados de um levantamento realizado pela Fundação Perseu Abramo em 2001 apontam para um número mínimo de 2,1 milhões de mulheres, uma já foi vítima de agressão doméstica.Apesar de várias pesquisas, realizadas por organizações não governamentais (ONGs) que atuam na defesa do direito das mulheres, não mensurarem a religião das vítimas, é inegável que muitas famílias, dentro da Igreja Evangélica, vivem este drama. Prova disso é a CASA DE ISABEL, um Centro de Apoio a Mulheres Vítimas de Violência, localizada no Bairro do Itaim Paulista, Zona Leste da Cidade de São Paulo, que é dirigida pela pesquisadora Dr. Sônia Regina Maurelli, 45. "Posso dizer que mais de 90% das mulheres que procuram a Casa de Isabel são evangélicas. Na grande maioria, membros de Igrejas Pentecostais", revela a pesquisadora, que também freqüenta uma Igreja Pentecostal, cujo nome não quis revelar. Ela é enfática ao analisar a importância que as igrejas protestantes dão ao problema da violência contra a mulher."Nenhuma. As igrejas, com raras exceções, não dão importância a essa questão", critica. Sonia acredita que os métodos usados por evangélicos para trabalhar nos relacionamentos, como os populares encontros de casais, são pouco eficazes na diminuição do problema. “Se fosse assim, não haveria tantas mulheres crentes aqui”. Para ela, é preciso abrir um espaço nas igrejas, em que temas que envolvam a família possam ser discutidos. “É necessário uma mudança radical. É preciso criar reuniões, em que as famílias possam abrir seus problemas. Um fim de semana viajando não resolve”.Nas dissidências da Casa de Isabel, é fácil encontrar grupos de mulheres com a bíblia aberta, senhoras murmurando corinhos cristãos e até mesmo a música no rádio da recepção, tocando canções evangélicas. “Toda nossa diretoria é evangélica e a maioria das funcionárias também”, explica à dirigente, que considera seu trabalho, uma espécie de ministério.E realmente não difere muito é na sala de Sônia que chegam histórias como de Joana, 28. Desde criança, ela carregou uma terrível herança: foi vitima de abuso sexual de seu pai biológico. “Até hoje tenho pesadelos com isso”, conta, muito emocionada. Quando casou com André, achou que o ciclo de violência havia cessado. Evangélico, membro de uma igreja neopentecostal, ele parecia um modelo de marido e pai. Tiveram cinco filhos. Mas o relacionamento começou a se complicar e Joana passou a dormir na casa dos fundos á sua, onde morava sua mãe. Uma noite, ouvi seu bebê chorar-ele dormia co os demais filhos do casale o pai. “Fiquei muito preocupada, mas meu marido dizia que eu estava louca e que não devia incomodá-lo”. Dias depois, sua filha de cinco anos contou q o pai a assediava e também molestava o bebê ás noite. O mundo de Joana desabou. “Não entendo como ele pôde fazer isso. Ele disse que era doente, me pediu perdão. Mas eu o expulsei de casa”.




SONIA REGINA MAURELLI, diretora da Casa de Isabel, um centro de apoio a mulheres vítimas de violência, garante: "Mais de 90% daquelas que nos procuram são evangélicas".






Assédio na Igreja - Traumatizada também ficou dona Inês, 51, membro de uma outra igreja pentecostal em São Paulo. Vítima, em casa, das agressões do marido, que vivia em estado de embriaguez, ela pensou que fosse encontrar na igreja uma ajuda para o problema. Começou um curso de teologia, mas a esperança acabou dando lugar ao medo. O professor do curso começou a assediá-la. ”Ele dizia para eu ligar caso tivesse dúvidas. Depois começou a me cercar e tentou me agarrar diversas vezes, me abraçando por trás”, relembra ela, que recebia ligações durante as madrugadas e ouvia propostas indecorosas do professor, também o principal auxiliar do pastor titular da igreja. Inês não sabia o que fazer. Confidenciou o problema a uma irmã do círculo de oração e o assunto chegou aos ouvidos do pastor responsável pela denominação. Ao saber que o pastor iria conversar com Inês, o professor apressadamente pediu para que ela negasse. ”Ele me dizia que era para negar tudo. Senão ele iria dizer para todos que eu estava louca”. Ela negou, mas depois, não agüentou o assédio, voltou e contou tudo ao pastor. “O pastor me disse que só não me excluiria porque eu fazia muitos trabalhos na igreja”. O assunto chegou aos ouvidos de todos na igreja e muitas irmãs se afastaram de Inês.”Eu passei a ser encarada como adúltera; virei motivo de piada. Tudo isso, porque ele- o professor de teologia-fala bem, era amoroso e dedicado dentro da igreja. Fora, porém, era outra pessoa”, comenta ela, que deprimida, precisou ser encaminhada para Casa de Isabel. “Por respostas assim, muitas igrejas são acusadas-principalmente por ONGs que atuam na defesa dos direitos das mulheres - de prestarem um desserviço a questão da violência doméstica, ao abafarem o problema”. A constatação é da antropóloga e pesquisadora Clara Mafra, do instituto de Estudos da Religião, o ISER, e do Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). ”Muitas campanhas governamentais que incentivam a vítima a denunciar o agressor foram recebidas no universo evangélico como estratégias enganosas, até malignas, pois só causariam escândalos e acentuariam a violência que se queria combater. Do outro lado, várias líderes e assessoras de ONGS identificam os evangélicos como os principais incentivadores da atitude de submissão auto-repressão que agravam a situação das mulheres vítimas de violência”. Diante deste quadro, ela decidiu se debruçar em um projeto, apresentado á Fundação Rockfeller, instituição que atua no campo de pesquisas médicas, chamando Formulações Paralelas, Intervenções Potenciais. A idéia era criar uma ponte entre políticas públicas de redução da violência domésticas no Rio de Janeiro e o vasto conjunto de atividades que os evangélicos desenvolvem com as mulheres em suas congregações.Em sua pesquisa, Clara descobriu que a atuação das igrejas na questão era diferente. “Também pensava que certas atitudes dos líderes eclesiásticos contribuiria para o aumento da violência e desestruturação familiar, mas a realidade é que as igrejas possuem um profundo trabalho de reestruturação das famílias. Na verdade, a violência é apenas um sintoma de problemas mais profundos que surgem quando o núcleo familiar entra em crise”. Ela ainda acredita que as igrejas possuem muitos relatos de violência doméstica por que são locais onde famílias sofrem esse tipo de problema costumam buscar apoio. “Muitas vítimas da violência procuram a igreja, mas os líderes que recebem estas pessoas não têm uma preparação adequada para tratar as denúncias”.



"ESTAVA CANSADA de apanhar do meu marido, que vivia bêbado. Procurei ajuda na igreja e comecei um curso de teologia. Mas o professor começou a me assediar. Ele tentava me agarrar e me abraçava por trás. Procurei o pastor, mas ele ameaçou me excluir se continuasse falando essas coisas. No fim, todo mundo começou a me olhar como uma fácil e adultera".Inês, 51 anos, evangélica.

Demonização – Outro aspecto cultura evangélica levantado pela pesquisadora é o da “demonização” do problema. “Elas tiram culpa do agressor e repassam para uma hoste maligna. Há estudos que comprovam que isso pode ajudar o agressor sair do ciclo de violencia”. Para ela, neste processo, fica mais facil para o agressor lidar com suas culpas e também para ser aceito novamente na família, afinal, o grande culpado pelos atos violentos passa a ser o demônio e não o marido ou companheiro. Ainda sim, a antropóloga reconhece que o tema ainda é um tabu entre os evangélicos, que normalmente preferem ocultar o problema. “A igreja ajuda a criar e alimenta o segredo. O conflito na família não pode estourar porque trata-se de uma ‘família cristã’, um ‘modelo’ para os outros fiéis”, explica.
“Falar sobre a violência é sempre difícil, mas creio que, apesar de ser contra o divórcio, a integridade física é mais importante”, defende o pastor Washington Luiz da Silva, 53, da Comunidade Boas Novas, na Vila Antonieta, zona leste da cidade de São Paulo. Radialista e coordenador do ministéro Edificando a Família, ele acredita que seja necessário intervir quando se conhece casos de violência praticada contra a mulher. “Não podemos aceitar isso. É claro que existe o perdão e a reconciliação, mas há casos em que é necessário uma separação temporária, para evitar que tragédias possam acontecer”. Para o Pastor, encontros de casais, palestras e jantares, promovidos pelas igrejas, para que seja discutida a questão da família, ajudam, sim a diminuir os casos de agressões. “Já tive casos em que, através do aconselhamento, podemos restaurar o lar. Mas nem sempre é assim”, admite.
É verdade que o tema é espinhoso e as soluções são, muitas vezes, contraditórias. Mas o que não se pode, de forma alguma, é fazer de conta que, dentro das igrejas evangélicas, violência doméstica não existe. Isso é uma agressão ao bom senso. “A violência contra a mulher não vê classe social, raça, cor, time de futebol ou denominação religiosa. É um problema que atinge a todos e pode atingir até mesmo a mais fiel crente”, finaliza Clara Mafra.
Fonte: Revista Eclesia ANO 11 (2006) Edição 117 Pagina 50 à 53
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