quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Bíblia com tratamento literário vira fenômeno de vendas na Noruega

Nova edição da Bíblia norueguesa. Brasil tem edição similar 'que faz sucesso entre leitores de clássicos'. Lançamento de tradução norueguesa provocou filas na porta das lojas.

O principal evento literário da Noruega em 2011 não foi uma das rentáveis histórias de mistério que a Escandinávia passou a exportar ao mundo na esteira do sucesso ilimitado da trilogia “Millennium”, escrita pelo sueco Stieg Larsson. A obra que encerrou o ano como best-seller por lá foi a Bíblia. Mas não uma edição qualquer da Bíblia: para produzir esta nova tradução para o norueguês – a primeira em 30 anos –, foram convocados 12 escritores, alguns entre os mais notórios do país nórdico. Trabalharam, ao longo de seis anos, junto de um time composto por 30 tradutores, padres e acadêmicos.

Ao reaparecerem na Noruega, vertidas diretamente do grego e do hebreu, as Sagradas Escrituras se converteram em fenômeno. No lançamento, houve gente em filas varando a madrugada diante de livrarias – “estilo ‘Harry Potter’”, cita um texto do jornal britânico “The Guardian”. Em entrevista ao diário, Stine Smemo Strachan, da Sociedade Bíblica Norueguesa, falou que se desejava oferecer uma versão “legível” e com “boa linguagem”. “Nenhum dos autores é religioso – eles são apenas bons escritores que imaginaram que seria um projeto interessante no qual se envolver.”

Resultado: 79 mil cópias comercializadas em poucas semanas, bastante acima da expectativa inicial, o que Strachan atribui à “legibilidade” e ao fato de se estar diante de um “evento cultural”. Para ele, há razões além da religião por trás disso. Quem está adquirindo não seriam apenas cristãos, do contrário as cifras seriam mais modestas. Há gente interessada também no texto em si.

Bíblia em versão literária (Foto: Divulgação)

Literária

A Sociedade Bíblica Norueguesa editou uma segunda opção do mesmo texto: é uma Bíblia sem capítulos nem versos, para ser lida “como um romance”. Vendeu “incrivelmente bem”, nas palavras de Strachan. A reportagem do “The Guardian” a descreve como sendo uma Bíblia “literária”. É o mesmo termo estampado na capa de um dos títulos comercializados pela Sociedade Bíblica do Brasil (SBB), que publica quatro traduções da Bíblia, em variados modelos. A obra em questão se chama “O Livro dos livros – Edição literária da Bíblia Sagrada” e, sintomaticamente, foi lançada na Bienal do Rio de 2011.

Não está na forma, contudo, a única diferença entre esta versão e a convencional. Em entrevista ao G1, o teólogo e linguista Paulo Teixeira, secretário de tradução e publicações da SBB, explica que a literária é “uma Bíblia de nicho, de segmento”. E que segmento seria esse? “O leitor em geral, o sujeito que gosta de ler um Dante [Alighieri, autor de “A divina comédia”], alguma coisa de ficção mais moderna, como o [J.R.R.] Tolkien [autor de “O senhor dos anéis”]. Faz um sucesso muito grande entre leitores de clássicos.”

Mais vendidas

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicada em 2008 pelo Instituto Pró-Livro, colocou as Sagradas Escrituras como livro mais lido – e com folga – pelos brasileiros. À época da apuração, feita em novembro e dezembro de 2007, "6,9 (7%) milhões de leitores estavam lendo a Bíblia": ela foi 18 vezes mais citada que vice-campeão, "O código Da Vinci". Quando a pergunta foi "qual o livro mais importante da vida do leitor", deu de novo a Bíblia no primeiro posto: ela foi dez vezes mais lembrada que o segundo colocado, "O stítio do pica-pau amarelo". O levantamento considerou 92% da população brasileira de então, ou 172,7 milhões de pessoas.

A assessoria de imprensa da Câmara Brasileira do Livro (CBL) afirma não saber qual a editora que mais vende Bíblias no país. Por parte da SBB, Teixeira oferece “uma estimativa”: “A gente tem entre 70 e 80% do assim chamado mercado brasileiro”. Trasposta para números absolutos, tal participação chegou a 6,78 milhões de unidades em 2011. Um recorde, aponta o secretário: “Isso, de Bíblias completas. E temos também diversas categorias, como a comum, que é apenas o texto bíblico, a de estudo, que contém comentários pra facilitar a compreensão...”.

Ele destaca uma “categoria”, em particular, que tem conquistado o público. Lançada em 2000, a “Nova tradução na linguagem de hoje” é a que mais cresce na predileção dos leitores. No site da SBB, ela é detalhada como “clara, exata e natural”. É, precisamente, o texto que a editora coloca também em “O Livro dos livros – Edição literária da Bíblia Sagrada”. Muda só a diagramação – a exemplo do similar norueguês, não apresenta colunas ou versículos.

Perguntado se a SBB cogita promover uma ação coletiva, agora encabeçada por escritores brasileiros, para tentar repetir o “evento cultural” que tomou a Noruega, Teixeira responde que “até este momento, ainda não pensamos”. Mas acha que “pode ser, sim, interessante”: “Acredito que envolver, digamos, celebridades literárias brasileiras, numa tradução ou numa releitura, pode ser muito bem-vindo. Até para quebrar o paradigma de que é um livro meramente religioso...”

Como exemplo da prática, ele recorre a uma das traduções que a editora publica, lançada originalmente em 1917. “Só pra você ter uma ideia do calibre das pessoas que participaram, o revisor de estilo e gramático foi o [político e escritor] Rui Barbosa. Os outros foram o [também político e escritor] Heráclito Graça e o [escritor, jornalista e pesquisador de literatura] José Veríssimo.”

Tradução

No Brasil, não existe uma tradução considerada a oficial da Bíblia, esclarece o padre Valdeir dos Santos Goulart, diretor editorial da Edições CNBB, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Ele conta que um grupo de “biblistas” está revisando a versão que a CNBB vende em coedição com a editora Canção Nova. “Acredito que até o final deste ano o texto já esteja pronto para ser encaminhado para a Santa Sé. Mas nenhuma Bíblia precisa ser enviada para lá. O que precisa é passar por algum responsável no Brasil”, explica o padre. “Por enquanto, nenhuma das Bíblias do Brasil foi aprovada por Roma. O fato de passar pela Santa Sé é ter o reconhecimento, mas não há a necessidade.”

Ele diz que “o pessoal não usa revelar muito” as cifras relativas ao comércio da Bíblia. De sua parte, calcula em cerca de 250 mil unidades por ano, na média. E há outras editoras que publicam a versão católica do livro. A Ave Maria, de São Paulo (SP), por exemplo, divulga vender anualmente algo em torno de 700 mil exemplares. “Embora tenhamos uma única tradução, temos uma preocupação muito grande em fazer Bíblias personalizadas. São mais de 30”, argumenta o padre Luis Erlin, diretor editorial da Ave Maria. “A gente tem capa especial para o jovem, uma para meninas adolescentes, exemplares mais populares... A de bolso está na base de R$ 13. A de luxo, de R$ 159.”

As editoras chegam aos clientes por meio de livrarias seculares e de livrarias próprias. No caso destas últimas, não se pode considerar que aconteça concorrência: o estabelecimento de propriedade de uma negocia exemplares produzidos por outra – e vice-versa. Mesmo porque o propósito, aqui, não seria o lucro. As editoras asseguram que o dinheiro arrecadado destina-se à confecção de novos livros e a ações de filantropia e caridade, o que vale para as católicas e para a SBB.

Paulo Teixeira concorda que o “principal cliente” da SBB não é a igreja católica: “Mas nós não distinguimos entre evangélicos e católicos”. Por outro lado, ele rejeita a descrição da instituição, fundada em 1948, como sendo “ecumênica”. “Evidente que a maioria absoluta tem a configuração protestante, evangélica, mas as escrituras em geral, e as obras acadêmicas que também publicamos, elas atingem todo mundo, tanto o evangélico quanto o seminarista católico.”

Tamanha produção é garantida pela Gráfica da Bíblia, que fica na sede nacional da SBB, em Barueri (SP). A gráfica, que iniciou atividades em 1995, armou, no ano passado, uma solenidade para celebrar a marca de 100 milhões de Bíblias impressas: 87 milhões na versão integral e mais 13 milhões de Novos Testamentos. Parcela disso é exportada, em textos escritos em idiomas que vão do espanhol e do inglês ao árabe e ao iorubá, língua falada em países da África. Em norueguês, por enquanto, não.


Fonte: G1
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