Qualquer pessoa que conheça um pouco de história sabe que o depois do século XVIII o mundo nunca mais foi o mesmo. Qualquer um que conhece a história do pensamento, também sabe que depois de Freud, não se pode mais pensar o homem da mesma maneira que antes. A psicanálise como bem disse o próprio Freud, acarretou a terceira e talvez mais grave ferida ao narcisismo humano. As outras duas são as descobertas de Copérnico e de Darwin.
No coração do homem, em seu desejo – a psicanálise o revelou – existe uma carência, um vazio, que nada nem ninguém podem preencher; carência que se constitui no motor de nossos afazeres, buscas e inquietações, constitui também a origem de uma inevitável alienação, que, em meio a uma multidão de fantasias, encontra-se sempre disposto a renascer.
Mesmo que se possa falar que Freud já passou, a verdade é que suas falas a respeito do inconsciente e da vida humana determinada por ele continuam atuantes.
Entre todas as esferas a religião foi uma das que se viram mais afetadas pelo pensamento freudiano. Para Freud, os cerimoniais da neurose revelam-se em surpreendente analogia com as práticas religiosas. Ambos se encontram motivados por intenso sentimento de culpa, originários, por sua vez, de desejos recalcados no inconsciente, dos quais um e outro – o neurótico e o homem religioso – se defendem mediante cerimônias. Desta forma, ele, considerou a neurose obsessiva como uma religião individual e a religião como uma neurose obsessiva universal.
A partir disto Freud explicou a religião em termos psicanalíticos, e também buscou fontes históricas para suas novas afirmações como a idéia de Deus como um pai exaltado, com o qual os homens se relacionam num misto de amor e ódio. Freud imaginou um drama primordial no qual um pai ciumento e onipotente é assassinado e devorado pelos filhos – única forma que estes encontram para ter acesso às mulheres, que o pai ciumentamente reservava para si. Esse assassinato primordial, espécie de pecado original e originante, seria a base das grandes instituições sociais: moral, direito e religião. No espaço deixado pelo pai a religião encontrou sua semente originária. O pai evolui com o passar do tempo de animal totêmico do clã até idéias de Deus como a judaico-cristã.
Em o “futuro de uma ilusão” de 1927, Freud afirma que a superação da religião é um passo inevitável no processo de amadurecimento geral da civilização. A humanidade deveria abandonar o Deus ilusório que é marcado por traços do pai atribuídos na infância, como pai criador, bom, justo, poderoso e sábio.
O que precisamos saber é que opiniões sobre religião e Deus não são a mesma coisa. E que cada opinião terá haver muito mais com a vida pessoal do que com descobertas científicas. Esse com certeza foi o caso de Freud. As bases que Freud utiliza no “Totem e Tabu” para explicar a origem da religião são hoje insustentáveis. Parece-nos mais claro que a os fatos da vida de Freud, como a morte de seu irmão Júlio aos dezoito meses de idade, a dedicação religiosa escassa, os incidentes com a babá católica ladra, a filiação ao judaísmo, algumas identificações ambivalentes com personagens como Moisés estão na gênese do seu ateísmo. Fora o ambiente em que Freud viveu, cercado por uma igreja preconceituosa, e por um pensamento positivista.
Retirando, no entanto, tais questões, a psicanálise trouxe uma grande ajuda para o entendimento de questões teológicas, como a imagem de Deus, a relação do homem com Ele, a culpa, pecado, salvação, vida após a morte, além das contribuições nas relações pastorais.
Freud tinha razão ao classificar como neuróticas muitas condutas religiosas, mas evidentemente que essas condutas não correspondem a uma autêntica experiência e prática de fé. Podemos considerar como neurótica toda experiência religiosa que não nasce do Evangelho, e tentarmos fazer uma distinção entre a fé neurótica e a fé no/do Evangelho.
A fé neurótica fala a um deus que na verdade é um prolongamento narcísico do próprio eu, numa tentativa de buscar a recuperação da síndrome da onipotência perdida na infância. Muitas vezes por trás desse pai exaltado, se encontra um algoz, que fica protegido, mesmo que o peso carregado seja gigantesco. A oração feita a este deus é extramemente neurotizada. Confunde-se Deus com a necessidade, tal qual a criança confunde a mãe com o peito que a amamenta. Já no caminho da oração autêntica, o Deus a quem se dirige não se deixa encerrar em nenhum tempo, em nenhum templo e em nenhum tipo de saber. Não se deixa possuir e nem manipular por capricho algum. Esse Deus não se manifesta de maneira mágica, daí a oração não brotar da necessidade, mas do desejo do ser, que não pretende obrigar a sua liberdade, mas que nos conduz ao Evangelho.
A fé neurótica costuma confundir Deus com sua representação paterno-materna. A projeção da onipotência, onisciência, onibenevolência paterna são transferidas para Deus. O deus do neurótico lhe responde todas as perguntas, lhe protege de todos os males e pode lhe fazer todas as coisas, claro no campo da ilusão. Deus é aliado dos seus próprios desejos.
A fé do Evangelho cre no Deus apresentado por Jesus, que não é o da providência-mágica, que está ali para nos fazer viver uma vida sem dores. O Deus revelado por e em Jesus nos remete de volta a realidade com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência, e em vez de solucionar o problema nos capacita a viver com e através deles. Ele não é o deus-explica-tudo, a paz que Dele procede não tem haver com um saber. Não é o deus das proibições, ameaças, castigos e vigilância de nossos atos e intenções. O Deus de Jesus reduz todo tipo de ambivalência nos conduzindo a uma reintegração, a um processo de individuação. O poder do Deus de Jesus está na entrega, na fragilidade do amor, não satisfaz a quem pede sinais – poder, ou saber. O Deus de Jesus é Amor, amor que não anula as diferenças e nem nos retira do encontro com o conflito.
A fé neurótica é cheia de culpa. A fé do Evangelho celebra o encontro. A primeira busca salvar-se, a segunda sabe-se salva. A primeira na busca de salvar-se vive um ciclo de culpa-absolvição, a segunda vive a realidade do perdão. A culpa do neurótico encerra o sujeito em si mesmo, o individuo vive para a sua culpa e em função dela. Por isso sua busca é pela salvação de tal mal. Até sua busca não lhe empurra para frente, pois não há um “para que”, mas apenas um “de”, que só o remete ao seu passado, ou a sua culpa. Isso é somado a atitudes constantes de asceticismos na tentativa de se sentir perfeito.
A fé do Evangelho liberta o homem de si mesmo e de sua busca de tentar salvar-se. O pecado torna-se assim, no Evangelho, algo passado, um assunto de certo modo liquidado. Libertos da culpa se vivem a realidade do Reino pregado por Jesus.
Fonte: Ivo Fernandes em seu blog
----------------------------------
No coração do homem, em seu desejo – a psicanálise o revelou – existe uma carência, um vazio, que nada nem ninguém podem preencher; carência que se constitui no motor de nossos afazeres, buscas e inquietações, constitui também a origem de uma inevitável alienação, que, em meio a uma multidão de fantasias, encontra-se sempre disposto a renascer.
Mesmo que se possa falar que Freud já passou, a verdade é que suas falas a respeito do inconsciente e da vida humana determinada por ele continuam atuantes.
Entre todas as esferas a religião foi uma das que se viram mais afetadas pelo pensamento freudiano. Para Freud, os cerimoniais da neurose revelam-se em surpreendente analogia com as práticas religiosas. Ambos se encontram motivados por intenso sentimento de culpa, originários, por sua vez, de desejos recalcados no inconsciente, dos quais um e outro – o neurótico e o homem religioso – se defendem mediante cerimônias. Desta forma, ele, considerou a neurose obsessiva como uma religião individual e a religião como uma neurose obsessiva universal.
A partir disto Freud explicou a religião em termos psicanalíticos, e também buscou fontes históricas para suas novas afirmações como a idéia de Deus como um pai exaltado, com o qual os homens se relacionam num misto de amor e ódio. Freud imaginou um drama primordial no qual um pai ciumento e onipotente é assassinado e devorado pelos filhos – única forma que estes encontram para ter acesso às mulheres, que o pai ciumentamente reservava para si. Esse assassinato primordial, espécie de pecado original e originante, seria a base das grandes instituições sociais: moral, direito e religião. No espaço deixado pelo pai a religião encontrou sua semente originária. O pai evolui com o passar do tempo de animal totêmico do clã até idéias de Deus como a judaico-cristã.
Em o “futuro de uma ilusão” de 1927, Freud afirma que a superação da religião é um passo inevitável no processo de amadurecimento geral da civilização. A humanidade deveria abandonar o Deus ilusório que é marcado por traços do pai atribuídos na infância, como pai criador, bom, justo, poderoso e sábio.
O que precisamos saber é que opiniões sobre religião e Deus não são a mesma coisa. E que cada opinião terá haver muito mais com a vida pessoal do que com descobertas científicas. Esse com certeza foi o caso de Freud. As bases que Freud utiliza no “Totem e Tabu” para explicar a origem da religião são hoje insustentáveis. Parece-nos mais claro que a os fatos da vida de Freud, como a morte de seu irmão Júlio aos dezoito meses de idade, a dedicação religiosa escassa, os incidentes com a babá católica ladra, a filiação ao judaísmo, algumas identificações ambivalentes com personagens como Moisés estão na gênese do seu ateísmo. Fora o ambiente em que Freud viveu, cercado por uma igreja preconceituosa, e por um pensamento positivista.
Retirando, no entanto, tais questões, a psicanálise trouxe uma grande ajuda para o entendimento de questões teológicas, como a imagem de Deus, a relação do homem com Ele, a culpa, pecado, salvação, vida após a morte, além das contribuições nas relações pastorais.
Freud tinha razão ao classificar como neuróticas muitas condutas religiosas, mas evidentemente que essas condutas não correspondem a uma autêntica experiência e prática de fé. Podemos considerar como neurótica toda experiência religiosa que não nasce do Evangelho, e tentarmos fazer uma distinção entre a fé neurótica e a fé no/do Evangelho.
A fé neurótica fala a um deus que na verdade é um prolongamento narcísico do próprio eu, numa tentativa de buscar a recuperação da síndrome da onipotência perdida na infância. Muitas vezes por trás desse pai exaltado, se encontra um algoz, que fica protegido, mesmo que o peso carregado seja gigantesco. A oração feita a este deus é extramemente neurotizada. Confunde-se Deus com a necessidade, tal qual a criança confunde a mãe com o peito que a amamenta. Já no caminho da oração autêntica, o Deus a quem se dirige não se deixa encerrar em nenhum tempo, em nenhum templo e em nenhum tipo de saber. Não se deixa possuir e nem manipular por capricho algum. Esse Deus não se manifesta de maneira mágica, daí a oração não brotar da necessidade, mas do desejo do ser, que não pretende obrigar a sua liberdade, mas que nos conduz ao Evangelho.
A fé neurótica costuma confundir Deus com sua representação paterno-materna. A projeção da onipotência, onisciência, onibenevolência paterna são transferidas para Deus. O deus do neurótico lhe responde todas as perguntas, lhe protege de todos os males e pode lhe fazer todas as coisas, claro no campo da ilusão. Deus é aliado dos seus próprios desejos.
A fé do Evangelho cre no Deus apresentado por Jesus, que não é o da providência-mágica, que está ali para nos fazer viver uma vida sem dores. O Deus revelado por e em Jesus nos remete de volta a realidade com toda a dureza que esta pode nos apresentar em muitos momentos de nossa existência, e em vez de solucionar o problema nos capacita a viver com e através deles. Ele não é o deus-explica-tudo, a paz que Dele procede não tem haver com um saber. Não é o deus das proibições, ameaças, castigos e vigilância de nossos atos e intenções. O Deus de Jesus reduz todo tipo de ambivalência nos conduzindo a uma reintegração, a um processo de individuação. O poder do Deus de Jesus está na entrega, na fragilidade do amor, não satisfaz a quem pede sinais – poder, ou saber. O Deus de Jesus é Amor, amor que não anula as diferenças e nem nos retira do encontro com o conflito.
A fé neurótica é cheia de culpa. A fé do Evangelho celebra o encontro. A primeira busca salvar-se, a segunda sabe-se salva. A primeira na busca de salvar-se vive um ciclo de culpa-absolvição, a segunda vive a realidade do perdão. A culpa do neurótico encerra o sujeito em si mesmo, o individuo vive para a sua culpa e em função dela. Por isso sua busca é pela salvação de tal mal. Até sua busca não lhe empurra para frente, pois não há um “para que”, mas apenas um “de”, que só o remete ao seu passado, ou a sua culpa. Isso é somado a atitudes constantes de asceticismos na tentativa de se sentir perfeito.
A fé do Evangelho liberta o homem de si mesmo e de sua busca de tentar salvar-se. O pecado torna-se assim, no Evangelho, algo passado, um assunto de certo modo liquidado. Libertos da culpa se vivem a realidade do Reino pregado por Jesus.
Fonte: Ivo Fernandes em seu blog
----------------------------------